[Perdas: Sem Acordos!]

Não, definitivamente, — não!

sem acordos – minhas medidas estão cheias!

dormi um sono de quase cinqüenta anos,

e agora, é tarde para qualquer ação, qualquer acordo...

A esturdice desta vida me basta;

não quero saber de acordos

com ninguém, nem comigo,

muito menos comigo, ora essa!

Tudo que eu quero é beber, beber, beber,

e depois, levantar-me da mesa do bar

e sair a caminhar pela calçada de pedras

à luz do poente, do meu poente!

Enquanto caminho, meus olhos procuram

sob os arbustos, coisas já despertencidas,

alguns tocos de cigarro, papéis de balas,

montes de fezes secas dos cães errantes,

pedaços do brinquedo do menino choroso,

nacos de pães secos, cheios de formigas,

cusparadas amarelentas de algum doente,

sonhos fanados em velhos bilhetes de loteria.

De nada adiantou taparem aquela cisterna:

quando eu passo por ela, vejo o círculo de terra cedida,

e sinto nos olhos — e como sinto! — o tremeluzir d'água,

e ouço o ruído cavo da pedra que eu atirei na cisterna!

A bebida me proporciona essa compulsão

de fixar meus sentidos nos restos das perdas,

aguça-me o sentido da minha verdade da hora,

qual verdade? Qualquer uma que seja tão-somente minha!

Enquanto eu tropeio pela calçada para chegar a casa,

penso na mística dessa ferradura que apanhei na sarjeta,

nas mãos rudes do alveitar que a cravou na pata do cavalo,

sinto pena do suor do ferreiro no seu labor infernal de forjá-la.

"As coisas" — confirmo — "cumprem o destino de serem perdidas",

de que, então... ora... estou pasmo... de que me aproveitou viver?

De que me aproveita estar sóbrio, diante do derrame da luz nas coisas,

das tantas perdas clareadas pelo meu olhar interrogante?!

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[Penas do Desterro, 03 de setembro de 2008]