A DIFERENÇA
nada me move no muro de cinza
contra o barro a poeira da estrada
levando o homem consigo
na marca das suas pegadas
para novos destinos velhas ilusões
em busca de paraísos misteriosos
e de castelos de areia sensíveis
à cegueira das ondas do mar
com apóstolos da vida a apontar
existirem sempre fugas resplandecentes
logo mais além da curva longa
nos lugares mais distantes e inacessíveis
onde a visão não logra chegar
a diferença que sinto
debaixo destas nuvens de algodão
que decoraram de há muito os seus nomes
e de um sol cruel que fendeu cicatrizes
nos rostos e nas costas do povo anónimo
peregrinando a terra e a água da ilha
centro pulsante do universo e do mundo
renovando-lhes o sangue nas veias
e cuidando através dos séculos
de apurar-lhes o verde dos seus alicerces
no colar das suas montanhas escarpadas
a diferença que sinto
dizia
entre o ontem obscurecido pela história
e o presente iluminado pela clarividência
dos livros abertos da memória
é que já não se parte só por partir
nem se navega apenas por navegar
sob o tactear da necessidade
a luzes-meias
com a noite do desconhecimento
nada me move contra o pó
o barro que concebeu o homem
e deu sentido ao milagre da mulher
nem ao semear do amor telúrico
avassalando o quotidiano cibernético
onde o demónio e um deus qualquer
podem até jogar ao dominó
o que me importa é viver o momento
interpelando o desconhecido
que me cumprimenta na rua
distraído pelo reboliço da cidade
e tentar cuidar de que um dia
não venha a morrer ainda procurando
por uma inalcançável identidade
no reconhecimento do abandono
de estar
só
José António Gonçalves
(inédito.27.09.04)