A IDA

Terra virgem, guardei-a para o dia

seguinte. Não a limpei das ervas. Nem

me esqueci das pedras em que o olhar

se perdeu. Levei tudo comigo até ao mar,

como se não me libertasse dela, sem

uma última vez beijar-lhe o pó, o sol.

Guardei-a para o fogo, para os alicerces

da viagem, pelo seu olor húmido e antigo.

Restam-me, ainda, algumas sementes e a voz

que o vale cimentou dentro do meu peito.

Tantos testemunhos lá se foram, rostos

já esquecidos; só ficou o calor das suas mãos,

as suas sombras perdidas, entre o nevoeiro.

Ninguém voltou. Nas narinas deixou o cheiro

da terra, uns barcos de pesca de todas as cores

e a atracção pelos velhos abismos, decompostos

em areão e cantaria, com canaviais à mistura,

desnudados sem pudor pela força ágil da ventania.

Por sobre os cadáveres, jamais nasceram flores.

José António Gonçalves

(inédito.17.05.04)

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JAG
Enviado por JAG em 09/02/2006
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