Atropelamento

O asfalto ainda estava frio

A chuva que caíra há pouco

Deixou-o com a temperatura ideal para receber um corpo.

A avenida fria e sem vida

Misturada a veículos quentes e sem vida

Aceitou o convite da chuva

E numa freada brusca

Mas nem por isso desleal

Não um, mas dois veículos

Dirigidos por seres com vida

Atropelaram o corpo que desfalecera no asfalto.

Os membros do infeliz transeunte

Ficaram sem comando e dilacerados

Seus miolos se espalharam pelo meio-fio

Não mais instigariam aquele pobre ser

A rumar por passarelas ou faixas de pedestre.

Logo surgiram olhares atentos e curiosos

Misturaram-se àqueles que ali chegaram

Para examinar se havia um resto de vida

E embora o corpo ainda estivesse quente

Não havia mais vida viva.

Meus olhos ouviram as freadas e as pancadas

Meus ouvidos presenciaram os rumores

Muitas perguntas sobre o infeliz atropelado

Posições tomadas sem quaisquer conhecimentos.

Meu ser vagava entre o acontecido e a vida…

O corpo pedia para ser retirado do local

E circunstâncias burocráticas impediam

Mesmo com o impaciente apelo do defunto.

Minha paciência era paciente com meu sentimento

Sentimento vil e cruel para tantos

Todavia, recheado de esperanças para este ser…

O corpo que falecera há pouco

Nutria a mesma esperança de atravessar a avenida

O sofrimento que abatia minhas necessidades

Me reconfortava com a luz que não existia

Mas que eu fizera existir na minha imaginação.

O que seria do defunto se tivesse atravessado a avenida?

Meu sofrimento não tem olhares curiosos

Nem mesmo salvadores de sobreaviso

Apenas sobrevive ao dia-a-dia dos infortúnios

E atravessa avenidas, incólume neste trânsito infernal

E caracteriza-se por se acoplar à vida.

Meu sofrimento resgata o pouco que me resta da vida

Não assumo posições de masoquista

Tampouco faço pouco caso das dificuldades

E mesmo atravessando avenidas de olhos fechados

Socorro-me à minha fiel percepção.

O que seria do infeliz atropelado se tivesse parado em outro bar?

Compreendo as tantas bocas falantes

Que não percebem o meu estado

E confidenciam segredos jamais revelados.

Meus ouvidos atentos ouvem, ouvem e ouvem…

Mistura de órgãos dilacerados

Retrato de um transeunte que não soube escapar…

Meus órgãos estão desgastados, porém vivos

E sei o que significa viver

Respirar… Entendê-la

Quem sabe?...