Desdita...

Não há desdita na lágrima do triste...

A desdita está em quem a provoca!

O ridículo está no dedo em riste

que ao abrigo de nada, tudo invoca...

Despudorado mundo e imoral vida

que cada vez mais sufoca e irrita...

Cada homem é uma folha já lida

num livro sem qualquer folha escrita...

De que serve fazer poesia?

Que serventia tem o sonhar?

Se trabalhamos até definhar o dia

e roemos a recompensa sem pensar...

Envelhecer é penetrar num engano

do qual nunca mais iremos sair!

A graça vai se perdendo a cada ano

e por vezes, até apetece desistir...

Que tamanha desdita há em nascer!

Que estranha forma de castigo...

Que tristeza enorme ver perecer

o cordão umbilical que julgava ter comigo...

Cada vez mais namoro a quietude!

Cada vez mais o silêncio me acompanha...

Serei assim até que algo mude!

E acho que serei assim até ao fim da campanha.

Jacinto Valente
Enviado por Jacinto Valente em 20/06/2008
Reeditado em 17/02/2021
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