LAMENTO DO PASTOREIO
Neste lamento nativo
diz que foi predestinado,
prum Negrito ser judiado
por seu malvado Patrão.
E dentre nosso Rincão
surgiu o Negrito, coitado,
que não era batizado
e foi se criando pagão.
O moleque foi crescendo
cada vez muito mais guapo,
tendo somente algum trapo
pra lhe tapar a nudez,
andava na redondez
peleando a vida mesquinha,
sem conhecer sua madrinha,
com sete anos, mais um mês.
Porém, o Patrão Celeste
que pra tudo está presente,
colocou-lhe bem na frente
a amada Nossa Senhora,
disse-lhe: Negrito agora
tu já tens a tua madrinha,
proteção que tu não tinha
em antes tempos de outrora.
- Ó Senhor eu Lhe agradeço
porém, não sei nem rezar,
peço pra Vancê perdoar
este negro mui infeliz,
por não saber o que diz
falando o que o peito sente,
neste momento presente
com madrinha, sou feliz.
Negrito não te lastimes
é o que diz este peão,
digo-te: aguenta o tirão,
porque de agora em diante,
tu terás por todo instante
este companheiro ao lado,
também, um infortunado
ao estar do pago distante.
Negrito Santo te vejo
por toda noite ao sonhar,
só para você aprender
na campanha, só e ao léu,
tendo acima o negro véu
noite escura na coxilha,
pareces uma flechilha
entre o pampa e o azul do céu.
Eu te envio Negrito Santo
uma gruta pra tu orar,
pra não mais te lamentar
na procura da tropilha,
que por ser tão andarilha
causou teu sofrimento,
ainda escuto teu lamento
cortando pampa e coxilha.
Se não falha-me a memória
relembrando estou agora,
duma carreira de outrora
que não pudestes ganhar,
e o Patrão mandou te atar
bem de pé, num palanquito
chorastes tanto Negrito
que dava pena escutar.
E por malvado e maleva
foi teus trapos retirando,
nuzinho fostes ficando
de maneira abarbarada,
deram trinta chicotadas
pra verem teu lastimar,
mesmo assim fostes cuidar
daquela enorme manada.
À noite quando solito
andava em campanha suja,
gritava a velha coruja
te deixando amedrontado,
choravas inconsolado
ouvindo o coaxar das rãs,
até que surgiu a manhã
a clarear o descampado.
E por trinta dias seguidos
não tinhas o que comer,
só pra você aprender
dizia o patrão desalmado,
até que um dia já cansado
veio o sono e te pegou.
Toda a tropilha escapou
deixando-te desatinado.
Pois noutro dia ao se acordar
viu faltar os animais,
e pensativo, no mais,
muito magoado ficou,
nesse momento passou
o filho do teu patrão,
guri falso, maldição!
Para o pai e tudo aumentou.
O patrão, velho tirano,
com palanque preparado,
e o Negrito bem atado
chamou o carrasco e mandou,
e mandado, o cruel surrou
até o pobre sucumbir,
esvaído sem se sentir
por terra o Negro tombou.
O patrão foi tão maleva
que pro Negrito ainda disse,
que da sua frente sumisse
e a tropa fosse campeando.
Pobrezinho já chorando
saiu pelo campo a fora,
implorando á Mãe Senhora,
gemendo e se lastimando.
E foi da gruta da Virgem
que o Negrito tão contente,
olhou pro céu, reverente
e de alegria até sorriu,
à Senhora ele pediu
para onde a tropa rumou,
de vela, um coto ganhou
e procurando ele saiu.
O Negrito e o coto aceso
por tudo onde ele passava,
em cada rastro deixava
um pingo cair pelo chão,
e nessa hora, num clarão
houve um milagre sagrado,
e o Negrito mui adorado
viu clarear a escuridão!
E a tropa tão andarilha
após tanto procurar,
foi na restinga encontrar
toda reunida, pastando,
parece que comungando
na Santa Ceia Sagrada,
como gaúchos em sesteada
um bom amargo tomando!
E gemendo de cansaço
depois de andar no confim,
encostou-se num cupim
muito grato à Virgem Santa,
mas a soneira que encanta
veio o Negrito vencer,
para o pobre adormecer
com tanta fadiga, tanta.
Mas ao despontar a aurora
de novo o filho voltou,
satanasmente soltou
a tropilha em disparada,
e foi-se dando risada
pra seu pai muito mentiu...
Que procurando não viu
nem negro, nem tropa, nada!
Ficou tão irado o patrão
que parecia o satanás,
mandou vir o capataz
para o Negrito pegar,
novamente lhe amarrar
e nele bateram tanto,
que o coitado já Santo
não podia mais nem chorar.
O Negrito triste após tanto
a Madrinha chamar,
sem sentido foi tombar
pelo chão esparramado,
com o corpito magoado
todo ensanguentado, torto,
e foi meio já por morto
num formigueiro atirado.
Já se passaram três dias
por matagal, por coxilha,
na procura da tropilha
o patrão já endiabrado,
vendo-se estar derrotado
foi ao formigueiro, sem fé,
lá viu o Negrito de pé
com o baio e a tropa do lado!
Para espanto do patrão
o Negrito ao lado tinha,
a sua querida Madrinha
a Virgem Nossa Senhora,
pois o Negrito ela adora
de maneira reverente;
O patrão rezou bem crente
numa devoção de outrora.
Muito abalado o patrão
nesse instante sucumbiu,
aos pés do Negrito caiu
e de joelhos pediu um dote,
mas o Negro serigote
risonho o beiço chupou,
depois, a tropa tocou
cantando e dando pinote...
La na Invernada Celeste
hoje o Negrito já santo,
de tanto trabalho, tanto,
que aqui na terra passou,
o descanso eterno achou
na Querência lá do céu,
até o gaudério incréu
ao Negro o culto prestou.
E hoje que ando solito
te evoco Negrito Santo,
peço emprestado teu manto
esse sagrado troféu,
um ranchinho de ataveu
pois em meu último tirão,
quero forrar meu caixão
pra o Rodeio Grande do céu.
Para Horaci Silveira dos Santos (Beno).