ROSTO E FACE NA JANELA

Vai à janela.

Deixa o dia penetrar

Teu corpo à dentro.

Volta, entrega-te a deglutir

O desjejum à base de canela,

Frios e um buquê de coentro.

Ah! O café indefectível

Em xícara de porcelana - sabor inesquecível.

Abre mão de frutas e assemelhados

Preconizados

Canonizados

Por tiranetes gastronômicos politicamente corretos.

Exercita a prerrogativa de degustar

O que gratifica ao paladar.

Outra vez vai à janela

Para, bem juntinho a ela

Fazer tua higiene bucal

Atirando, em direção à rua, saburra e saliva,

Não importando se, em trajetória à deriva

Aporte em alvo não visado:

Corpo humano deficiente, velho ou fragilizado

Quem sabe, cachorro de felpuda plumagem

Ou ainda outro animal esmeradamente tratado.

De retorno à sala

Escancara a boca odorizando os quatro cantos

Com o hálito fétido que dessa boca ainda exala.

Distensiona-te com sequenciais bocejos.

Atende aos triviais desejos

Junta dedos em pinça

Do nariz extraindo a impertinente crosta

Que os despolidos chamam de "catota".

Na sequência,

E na mais inteira displicência

Joga-te no estofado preferido

Presta então a reverência

Aos teus antepassados

Com pés e pernas escancarados,

Expondo, de tua anatomia, íntimos detalhes sempre guardados.

Faze-o de frente aos seus retratos no console

Sobre o qual estão sacralizados.

Segue para os teus aposentos privados,

Descarta roupa e tudo o que teu corpo cobre,

Cumpre o ritual que te revela nobre:

Ducha, dentifrícios, óleos aromatizados,

Roupas de tecidos e cortes personalizados,

Adereços de exclusivos joalheiros.

Olhando o espelho

Executa o que se encontra na pauta dos roteiros,

Chama a criada íntima

E denotando na voz habitual desdém

Emite as ordens de sempre

Dela ouvindo o rotineiro "amém".

Torna à janela,

Contida, sorridente, bela.

Agora, mesmo a contragosto

Exibe à plebe a falsa face de teu rosto.

Alfredo Duarte de Alencar
Enviado por Alfredo Duarte de Alencar em 29/06/2012
Reeditado em 23/07/2012
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