ROSTO E FACE NA JANELA
Vai à janela.
Deixa o dia penetrar
Teu corpo à dentro.
Volta, entrega-te a deglutir
O desjejum à base de canela,
Frios e um buquê de coentro.
Ah! O café indefectível
Em xícara de porcelana - sabor inesquecível.
Abre mão de frutas e assemelhados
Preconizados
Canonizados
Por tiranetes gastronômicos politicamente corretos.
Exercita a prerrogativa de degustar
O que gratifica ao paladar.
Outra vez vai à janela
Para, bem juntinho a ela
Fazer tua higiene bucal
Atirando, em direção à rua, saburra e saliva,
Não importando se, em trajetória à deriva
Aporte em alvo não visado:
Corpo humano deficiente, velho ou fragilizado
Quem sabe, cachorro de felpuda plumagem
Ou ainda outro animal esmeradamente tratado.
De retorno à sala
Escancara a boca odorizando os quatro cantos
Com o hálito fétido que dessa boca ainda exala.
Distensiona-te com sequenciais bocejos.
Atende aos triviais desejos
Junta dedos em pinça
Do nariz extraindo a impertinente crosta
Que os despolidos chamam de "catota".
Na sequência,
E na mais inteira displicência
Joga-te no estofado preferido
Presta então a reverência
Aos teus antepassados
Com pés e pernas escancarados,
Expondo, de tua anatomia, íntimos detalhes sempre guardados.
Faze-o de frente aos seus retratos no console
Sobre o qual estão sacralizados.
Segue para os teus aposentos privados,
Descarta roupa e tudo o que teu corpo cobre,
Cumpre o ritual que te revela nobre:
Ducha, dentifrícios, óleos aromatizados,
Roupas de tecidos e cortes personalizados,
Adereços de exclusivos joalheiros.
Olhando o espelho
Executa o que se encontra na pauta dos roteiros,
Chama a criada íntima
E denotando na voz habitual desdém
Emite as ordens de sempre
Dela ouvindo o rotineiro "amém".
Torna à janela,
Contida, sorridente, bela.
Agora, mesmo a contragosto
Exibe à plebe a falsa face de teu rosto.