Invernias

O inverno viera a trote

Co'a inclemência das geadas,

Vitrificando as aguadas

E polvilhando coxilhas;

Encolhera-se a tropilha

Sob os braços da figueira

Que como vaca tambeira

Acobertara sua cria,

E os rigores da invernia,

Num milonguear campechano,

Chegaram co'o Minuano

Impondo soberania.

Um cusco branco, pitoco,

Que ao entardecer pastoreava,

Pela manhã, se aninhava

No aconchego da cozinha;

Do velho fogão provinha

Dos gravetos, o estalido,

Chamando o café dormido

Pra junto do pão-caseiro:

E um gato cinza, matreiro,

Sobre um cepo ronronava

E um radiozito chiava

Notícias do povoeiro.

A vidraça embaciada

Foi a lousa de brinquedo,

O giz a ponta dos dedos,

Traçando ingênuos desenhos,

E ainda hoje os detenho

Num baú de fantasias

Sem prever que ali nascia

Meu amor ao magistério,

E brotou nesse gaudério

A vertente do idioma

Que versejando o retoma

Por missão e ministério.

Pouco menos de uma légua

Era o caminho da escola

Onde o piazito pachola

De boina preta, tapeada

Foi paleteando a tabuada

E gineteando a cartilha,

Da retidão fez encilha

Sem jamais pedir tenência

E pautou sua consciência

Tendo os pais como modelo

Que lhe deram por sinuelo

Ter orgulho da querência.

Julguei que apenas restaram

Recuerdos como legado,

Pois não houvera guardado

Regalos da meninice,

E quem sabe na velhice,

Numa mateada de afeto,

Mostrar orgulhoso aos netos

Um brinquedo esmaecido,

Eis que noto, embevecido

Que a invernia retornara

E desta vez se alojara

No cabelo encanecido.

Jorge Moraes - Livro: Cantos ao entardecer

Jorge Moraes
Enviado por Jorge Moraes em 19/04/2010
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