A VIRGEM E O EUNUCO

A VIRGEM E O EUNUCO

"e ele suspira, assim como suspira o eunuco ao abraçar uma virgem." 

Eclesiástico 30.21

Foi quando sobre o campo damasceno

Reinaram os selêucidas da Grécia,

Que do magno Alexandre o mando pleno

Herdaram após longa peripécia.

Expandindo pela Ásia o mundo heleno,

Fosse de forma sábia ou mesmo néscia:

-- "Aos povos antiquíssimos d'Oriente

Um novo império grego se sustente!"

Temeroso de novas guerras, houve

Um povo que firmando juramento

Ao grande imperador por bem aprouve

Seu rei dar sua filha em casamento.

A fim-de que melhor e mais se louve

Sua fidelidade em detrimento

Dos costumes e leis que partilhavam,

Enquanto mais aos gregos se inclinavam.

Quanto à filha do rei, viveu reclusa.

De infante prometida ao grão senhor,

Quando as regras lhe chegam, por confusa,

Ignora ela que fosse ardor e amor…

Já moça, todavia, como se usa,

É posta a cultivar o seu pudor

N'alguma escura alcova sem janelas,

Na qual os ricos guardam suas belas.

Mas, de tão melancólica e tão pálida,

Parecia em desleixos s'entregar

A uma existência estúpida de inválida

Por tola-mas-donzel subir no altar.

Preocupado com sua forma esquálida,

O rei, seu pai, ordena lhe chamar.

E duro lhe questiona em sua doença,

A ver n'essa tristeza antes ofensa:

-- "Filha minha, o que vós me quereis mais?

Se vos dei por consorte um soberano,

Por que tão alto ecoam vossos ais?

Resguardei-vos d'olhar mal e mundano,

Mas vós, dia após dia, definhais

Em morrer empenhada, salvo engano.

Dizei-me, ó principesca, que quereis

A vô-lo conceder com mãos de reis".

-- "Senhor meu pai, sozinha apenas vivo

Qual canário cantando na gaiola:

Grades, embora d'ouro, o têm captivo

E, tolo, s'equilibra pela argola…

Só peço um preceptor que, compassivo,

Possa fazer-me as vezes d'uma escola

E ensine o que se sabe ou se acredita

Até qu'eu me perceba uma erudita".

-- "Minha princesa, muito me pedis,

Pois prometi guardar-vos dos olhares

Àquele que vos tem olhos gentis.

Eu, contudo, por todos os lugares

Mandarei vos buscar, como se diz,

Um castrado que sirva por bons lares.

Algum d'estes, discreto e de valor,

Há-de se nos servir de preceptor".

De facto, era costume muito antigo,

Que houvesse um servidor emasculado

N'aquelas casas reais por sob abrigo.

Porquanto confiável, pois, castrado

Tinham por secretário e mesmo amigo

Quem assim desde a infância preparado.

Aquele, todavia, também douto

A aplacar da princesa o tom revolto.

Mas os melhores vinham do Alto Nilo.

Jovens núbios e etíopes que, escravos,

'Inda impúberes passam por aquilo…

Sob pretexto d'havê-los menos bravos,

Junto a sábios obtêm por fim asilo,

Vivendo sem grilhões duros e ignavos.

E aprendem tudo quanto a se saber

Para fâmulos leais virem a ser.

Co'os homens do deserto se aprendia

As ciências de ecônomos mordomos.

E, além das muitas línguas, geometria,

Cultivos de verduras, ervas, pomos…

Alguns tinham noções de astronomia

Outros, pelas estantes guardam tomos,

Escriturando para seus senhores

Contratos, enfiteuses e penhores.

Mas não raro os eunucos eram vistos

A guardar bens muito mais preciosos.

Vindo ter onde folgam os benquistos:

Os herdeiros e herdeiras desejosos!

Onde a salvo de tantos imprevistos

Os senhores proíbem, bons esposos,

O convívio de estranhos com os seus

Restritos aos umbrais dos gineceus.

O rei, muito zeloso, à filha diz

Irem buscar no Egipto o preceptor

Que lh'ensinasse tudo quanto quis.

E ela, muito admirada em seu favor,

Não escondia o quanto era feliz

Em ver muito maior o seu valor.

Contente, beija ao pai as suas mãos

E torna, alegremente, a seus desvãos.

Chega o eunuco, um tipo afeminado;

Melhor, emasculado… Era um mancebo

Em modos e trejeitos refinado.

Tão belo quanto Apolo ou quanto Febo…

Lá dos confins do Sud fora levado,

Ainda bem pequeno; ainda efebo,

Onde o Nilo em montanhas escondia

A fonte em que extenso principia.

No Egipto ele valeu seu peso em ouro

Visto falante em grego o carinegro

-- Por distinto do núbio e até do mouro

A pele n'um retinto tom de negro --

Na Síria revelou-se um grão tesouro

O eunuco àquela virgem d'olhar egro,

Porquanto lh'ensinasse em seu poder

Da grande Alexandria o grão saber.

Breves anos os dois a compartilhar

Dos papiros o gosto e mesmo o gozo,

Lograram, sempre juntos, encontrar

As verdades d'um século sinuoso

Fosse na Septuaginta as contemplar

Ou mais do Estagirita consciencioso.

E, observando os mistérios pitagóricos,

Confrontam hedonistas e alegóricos.

Todavia, onde Amor quer habitar

Pouco podem os planos das Nações…

Tardando o imperador em desposar

A princesa de grandes opiniões,

Vê ela em seu eunuco a quem amar

A despeito de suas limitações…

Desvairada, ela ordena que a possua

Deitando em sua alcova toda nua.

Iniciado aos mistérios de Priapo

Onde em prazer anal se consumava,

O eunuco se despindo cada trapo

À virgem penetrou ardendo em lava

O deus em suas mãos, erecto e guapo!

De facto, à bunda d'ela castigava,

Enquanto o frágil hímen preservado

Ao futuro marido era guardado.

Ele -- por quase macho ou quase fêmea --

Soube amar, apesar de tudo e todos,

Pelas sombras d'alcova su'alma gêmea,

Como homem ou mulher, de muitos modos.

No mais, vindo chamá-la de Epistêmea,

Fez oculta, por enganos mais engodos,

A verdade das tardes solitárias

Para mais a abraçar por horas várias…

E enfim, o imperador ao desposá-la,

Rompendo-lhe seu hímen intocado,

Mais ignora que enquanto ela se cala,

Pensa apenas em ter com seu amado:

Sim, logo após o esposo deflorá-la,

Gozar com seu eunuco afeminado!

E o sangue no lençol, nódoa tão vã,

De todos sele a paz pela manhã…

Betim - 23 01 2019