adolescência
aquela menina sempre discreta e atenta, alta, magérrima,
ereta, dentuça
de longos cabelos indóceis que pareciam duros e esticados
repartia-me em dois
algo em mim a rejeitava, com força
algo em mim perguntava se quem a rejeitava era mesmo eu
ou aquele estúpido senso comum
que embota a percepção dos adolescentes
dita o que é bonito e desejável
e o que é feio e repulsivo
algo em mim se revoltava com a inaceitável atração que ela exercia
apesar dos dentes, do cabelo, da magreza
ela tinha traços harmoniosos, únicos, francos
e eu adorava as magras e altas...
mas ela era mesmo feia
e como poderia atrair-me uma feia?
e parece ainda que a consciência de ser feia
mas resignada, resolvida em sua própria feiúra
conferia-lhe uma estranha elegância e segurança
que só faziam revoltar-me, e atrair-me, ainda mais
mas o pior é que
quando lutando comigo mesmo
eu secretamente a seguia com o olhar
parecia que ela o sabia
e discretamente, como que distraída
procurava seduzir-me, exalava uma feminilidade
que me estonteava
e o fazia quero crer que também me desejando
nunca o soube ao certo
Publicado no livro "gestação caosmopolita" (2014).