Instantes - Gil Bertho Lopes

INSTANTES

A casa estava cheia para ver o espetáculo

Era uma casa bonita, bem cuidada, fina

Havia muitas cadeiras

Mas o apoio para os braços era quase em comum

Havia uma presença anônima

Vizinhos costumam ser interessantes, às vezes

Impossível não perceber a respiração ofegante

A inquietação e o roçar quase ingênuo de ombros e cotovelos

Um cheiro aromático, adocicado, recendia nas narinas

Denunciando a bala levada à boca

A delícia... A língua... O ósculo imaginado

O convite-programa do espetáculo virou abano

Mas não arrebatava o calor que subia pelo corpo

De repente um barulho de tiro vindo do palco

Um susto... Um balbuciar...

Num ímpeto, um leve toque de mãos

Comecei a viver o inusitado

A aventura amorosa mais sutil de toda a minha vida

Ombro com ombro já se comprimiam com avidez

O que estava apenas no começo, incógnito

Foi-se perdendo com o espetáculo que chegava ao fim

Desejei que fossem eternos aqueles instantes

Sabia que logo as cortinas se fechariam

E às escâncaras

Toda a platéia desnudaria aquele amor terno, inocente, fugaz

Enfim, os aplausos

A difícil decisão entre aplaudir ou permanecer inerte

Com a mão quase sobre a outra mão, em total discernimento

Aplaudi contrafeito

Todos de pé, sob intensa luz - momento para uma rápida olhadela

Então, vi seu rosto - bonito, lúbrico

E os olhos que diziam mil coisas

Não trocamos palavras...

Mas sei que alguma coisa trocamos.