À FLOR DO PELO / PINGOS DE SOL

À FLOR DO PELO I (31 MAR 12)

É na pele contra a pele que se roça

que se acha a sensação da completude,

seja esse ato de meiguice ou rude,

bem dentro dele o bem-estar se empoça

e se acumula na carne que retoça,

em forma de energia que se estude

como aplicar nos atos que se ilude

valerem mais do que do fado a troça.

Da carne contra a carne, esse carinho

que de nós ambos nos torna mais conscientes

nos prepara e fortalece para a lida,

nesse ato tão breve e tão mesquinho,

que nos joga um contra o outro, consequentes

com tal momento sólido da vida.

À FLOR DO PELO II

Nesse contato de cada tegumento

com tegumento de contato fervoroso,

o amor ferve em toque delicioso,

amor tocado pelo mesmo fervimento.

É quando o sangue aflora em movimento

e o momento se faz mais sanguinoso,

a cada salto um pouco mais ditoso,

saltando o sangue em seu exaltamento.

Porque a pele é do amor a cobertura

e nesse instante o amor aflora à pele,

quando outra pele fundamente explora,

até que explode em sangue de brancura

e de outra vida a brotação expele,

excitada pela pele dessa hora.

À FLOR DO PELO III

E a pele que se oculta sob o pelo,

à luz surgindo, em momento desconforme,

pouco concebe do destino enorme,

mal sabe será horrendo ou será belo.

O que acontece nesse estertor de zelo

é um egoísmo de ambição disforme,

submissão que à Natureza se conforme,

determinando de novo escravo o selo.

Não escolheram nossos antepassados,

encolhidos sob o pelo e sob a pele,

mas tais impulsos são hoje controlados.

Fica somente o prazer desta armadilha,

sem que no berço um rosto se desvele,

a percorrer da raça a velha trilha.

À FLOR DO PELO IV

Porém a pele do pelo ainda é táctil

e no momento da ânsia se horripila;

embora alguns se submetam à esquila,

sem pelo a pele se faz menos versátil.

Nessa busca tão só do amor volátil

que o sentimento, às vezes, aniquila;

faísca breve e ambição de adquiri-la,

presa a ilusão no instante mais contrátil.

Contudo, eu busco da pele a maciez

e dos pelos da pele a calidez,

busco o prazer mas quero mais ternura,

que a pele se renova tão frequente,

caem os pelos qual estrela incandescente

e tão só a recordação em mim perdura.

PINGOS DE SOL I (1º ABR 12)

Nesses sucos de amor entrelaçados,

quando o Universo estaca por momento,

eu vejo a Lua, em seu padecimento,

perante o Sol potente e hormonizado.

A cada vez que se unem, lado a lado,

queda-se a Lua num empalidecimento,

em depressão pós-solar de esgotamento,

após instantes de ardor descompassados.

E o suco do luar, por entre o estreito

canal que lhes permite breve união,

mal lubrifica a potência desse Sol,

que lhe resseca o tegumento e o leito,

suco do Sol em tal fecundação,

quando se encontram no princípio do arrebol.

PINGOS DE SOL II

Mas quando ocorre esse arrebatamento

no fim do dia,do Sol no seu cansaço,

a Lua o toma sobre o seu regaço

e então o esgota, em inverso aleitamento.

E é o Sol que empalidece em tal momento,

ejaculando seus raios pelo espaço,

vermelho, rosa, marfim no seu abraço,

perdendo as cores no seu recolhimento.

A Lua toma então suco de amor

e se reveste na prata do esplendor,

como um espelho no solo em que se pisa

e a gente esquece que tem rosto enrugado,

nas noites raras em que se faz ruborizado,

e se enamora de sua face lisa!...

PINGOS DE SOL III

Mas quando o Sol a encontra de manhã,

toma o suco da Lua e faz o orvalho,

na refeição matinal de cada talho

da lua-laranja de expressão louçã.

E logo a Lua se vai tornando vã,

balão de prata que explode contra o galho

de um raio desse Sol, pobre espantalho,

sua prata falsa tão só balangandã!...

Mas cada gota do orvalho é leve lua,

astro minúsculo a refletir a luz,

em que julgamos ser o Sol que nos reluz.

Porém nela é a Lua escura que se estua,

resguardada pelo Sol em seu harém,

em que as estrelas aprisionou também...

PINGOS DE SOL IV

Porém se a Lua o encontra ao entardecer,

furta o suco do Sol e faz sereno,

sobre as cabeças monótono veneno,

enquanto o outro se enegrece a enlanguescer.

E a geada cria para o seu prazer,

pintalgando cada vão do chão terreno

com mil gotículas de solar pequeno,

que dançam toda a noite até morrer.

E a gente pensa ser a Lua condensada

nesses pequenos cristais de luz prateada,

mas é no Sol que pisamos, realmente,

enquanto a Lua, com estrelas no pescoço,

nos finge apresentar um rosto moço,

em cada orelha um cometa diferente!...

fumarolas roxas i -- (jan 2009)

quero a tristeza que me dás. mais rica

que qualquer mostra de tua indiferença.

atribuirei a ela uma valência

que lentamente, como amor implica,

com doces pontos de alegria salpica

o lenço da saudade. e sua presença

imporá pouco a pouco e, nessa crença,

felicidade e um tanto mais significa.

porque outra letícia não conheço

que relembrar as horas que me deste

por mais me transbordassem desvalia.

e por isso, a tristeza te agradeço,

mais que momentos em que nem sequer soubeste

que tinhas para dar melancolia.

fumarolas roxas ii - 19 set 11

melancolia é uma fumaça roxa

que brota de malignos incensários,

disfarçados em turíbulos solidários,

volutas que se enroscam em minha coxa.

melancolia é como incenso em trouxa

um amarrado de perfumes tão contrários

em sua manifestação, tão multifários

que o olfato lançam em voragem frouxa.

melancolia é a dança dos pecados

que não se cometeu e se queria.

quem deseja lançar-se no vulcão

e só levou os passos descuidados

à margem da cratera que se abria,

mas foi retido pela própria hesitação.

fumarolas roxas iii

minha tristeza é fumaça em cor mostarda,

coisas mofadas de que já desisti,

mas insistia em guardar. porém descri

dessas palhas de desejos que se aguarda

e revesti minha toga de outra farda

quando a outro destino me acolhi

dentro da própria alma, em que acendi

a lenha dessa chama. e que me arda

o olfato perante o auto-de-fé

de minhas memórias já desperdiçadas,

que lancei indiferente nas calçadas.

não mais meu peito lhes servirá de sé.

minhas tristezas secas e espalhadas

por sob as solas de quem anda a pé.

fumarolas roxas iv

é vermelha a fumarola indiferente

de quem apenas me saúda de passagem

e me destrata, sem qualquer vantagem,

embora reconheça e cumprimente.

é vermelha a fumarola do indecente

que afronta a indiferença com coragem

e sofre os choques de maior voltagem

a cada nova experiência deprimente.

as fumarolas sobem, simplesmente,

sem o menor interesse nos passantes,

réstias de cinza em simples rodopio.

e nos envolvem em seu dançar, somente

porque passam seus giros triunfantes,

igual que as pedras que perpassa um rio.

fumarolas roxas v

também é roxa a que sai da desvalia,

porém de cunho bem mais pernicioso,

pois não denota um coração ditoso

esse fumo que das ventas se desfia...

porque essa fumarola sem magia

se expande das entranhas, em doloroso

espalhar-se pelo mundo, em espantoso

evolar-se ao redor de quem não o via.

e é maligna em sua transfusão,

que influencia àqueles que a respiram,

que se submetem a tal contaminação

e que nos mostram amizade e até suspiram,

quando, de fato, deviam-se afastar,

para a si mesmos não se envenenar.

fumarolas roxas vi

mas é azul a fumarola da alegria,

embora muitos a pretendam rosa.

ela se expande, tênue e deleitosa

e se espalha ao redor, meiga euforia.

a despertar sorrisos em quem a via,

talvez inveja, porém pundonorosa,

que se comente, no meio de uma prosa,

já pintalgada por gentil melancolia.

mas é azul a fumaça de um amor,

porque o rosa é reservado para dois,

enquanto olhares refletem a cor do ar.

pois seja sempre azul teu bom-humor

e para quem o vir, tenhas depois

um pingo de carinho a lhe emprestar.

INFÂNCIA PORTÁTIL I (2006)

Foi de repente. A casa fez-se imensa

e eu caminhava quase rente ao chão.

Paredes muito altas, qual mansão,

em que vivesse fantasia intensa...

Eu andava curvado, a face tensa,

sem expressar nos lábios emoção.

Apenas meu olhar tinha expressão:

recoberta de pelos, mata densa

era minha carne toda e vi uma pata;

olhava para cima em minha surpresa

e via um vulto longo a me fitar...

Por um momento, eu encarnei na gata

e ela estava em mim, estranha empresa,

que pudéssemos por instante nos trocar!

INFÂNCIA PORTÁTIL II - 18 SET 11

E se estivesse a gata em meu lugar,

que estranha a impressão que sentiria?

Sobre meu ombro talvez que viajaria,

mais que em meu colo de seu acostumar.

Ou quem sabe, que em prateleira estaria,

ponto mais alto a que jamais fora alcançar,

(dentro da casa ao menos) ou pensar

que em novo telhado ascenderia...

Pelos meus olhos menos luz veria,

menos detalhes também a perceber:

como era fraco o cheiro desse olfato!

E agilidade muito menor teria,

neste meu corpo já cansado de mover

e revestido de roupas por recato!...

INFÂNCIA PORTÁTIL III

E eu, no corpo dela, a juventude

sentiria, de repente, retornar.

Bem poucos anos têm esse meu par

embora o cálculo que fazem até ajude:

Cada ano de um gato o tempo ilude

como sete de meus anos a passar.

Eu estaria ainda no limiar

de minha adolescência um tanto rude...

Desajeitado em meu trato social,

por ter sido educado em demasia

a um ponto de não ter senão temor

quando fora desse círculo natural

dos parentes e amigos em que cria,

havendo apenas inimigos no exterior.

INFÂNCIA PORTÁTIL IV

Melhor fora ter a gata só um ano,

o que seria o mesmo que meus sete!...

Uma criança que em todo lugar mete

o seu focinho e o bigode soberano...

Com o rabo peludo, um espanador,

que me serve de leme a meu pular

de um telhado a outro, em adejar,

sem sentir da escuridão qualquer temor.

Bem melhor que o menino que então fui

a quem tudo ou quase tudo proibiam,

que só podia ir aonde iam

e cujo coração ainda me influi

em situações um pouco inesperadas,

no despertar de lembranças angustiadas...

INFÂNCIA PORTÁTIL V

Pobre da gata dentro da minha pele!

completamente nua sem seus pelos,

assustada inteiramente em seus desvelos,

suas faces lisas a que o vento gele!...

Pobre da gata que o destino atrele

dentro de minha cabeça, os vagos selos

de seu cérebro incapazes de movê-los

se a ânsia de acionar membros a impele!

Pois nem sequer encontraria um rabo!

Bigode eu tenho, mas sem utilidade,

não mais do que apêndices do rosto...

Salvo um adorno de que ainda me gabo,

sem contribuírem em nada, é bem verdade,

já bem grisalhos para o meu desgosto!...

INFÂNCIA PORTÁTIL VI

Por sorte a sensação foi de um instante

e nem sei se a gatinha a partilhou...

Se por momentos sua mente deslocou

sob a influência da minha mais vibrante.

Falando seriamente, a delirante

sensação que tal soneto registrou

pertence a meu passado e desbotou:

não me foi em extremo impressionante.

Muitos rascunhos esquecidos no passado

me causam boa surpresa, com frequência,

que me parece até em sonambulismo

terem sido redigidos, escapado

de um sonho de pudor ou de indecência,

no feroz esplendor do romantismo!...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 17/05/2012
Código do texto: T3673332
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