ALVORADA RUBRA & MAIS
ALVORADA RUBRA I (30 MAR 12)
Seu ventre é luz de mel, um suculento
fruto de aroma agreste, som e vida,
em que somente ao penetrar acho guarida
de tanto embate e ardor sanguissedento.
Seu ventre é cor e ninho, um tegumento
que me consola, uma ilusão querida
por breve tempo, não menos pretendida
do que a respiração em tal momento.
Pois que seria da vida, não houvesse
o carinho de suas pernas e seus braços
e a calidez do umbigo contra o meu?
Muito mais infeliz, se não tivesse
como enfim derramar-me em seus espaços,
quando me sinto totalmente eu?
ALVORADA RUBRA II
Dessa primeira vez que vi seu rosto
foi qual se o sol brilhasse de sua face
e seu corpo inteiramente rebrilhasse,
qual lamparina na hora do sol posto...
Desde que, por vez primeira, bebi o mosto
de tal vinho que sua taça derramasse,
foi qual certeza plena se estampasse
nesse prazer que é primo do desgosto...
Eu me tornei em pólen, totalmente,
misturado em acquavit e hidromel,
nessa emoção de meu descobrimento,
quando sua carne cobriu-me, inteiramente
e me perdi em sua teia de ouropel,
na intensidade de meu deslumbramento.
ALVORADA RUBRA III
Pois é claro que existe muito mais
que pura e simples atração carnal
no ultrapassar iniciático do hormonal
de certa mente mais profunda que as demais.
Pois fazer sexo é perder-se no jamais
da armadilha de teor feromonal:
como explosão extingue-se, em mortal
satisfação desgastada no ademais...
Porém fazer amor envolve a calma
desse encontro de caráter essencial,
quando ela sou eu e eu me torno nela,
quando se encaixam os fragmentos dalma,
do amor o sexo complemento natural,
qual luz do sol a escorrer pela janela.
ALVORADA RUBRA IV
E da primeira vez que se consagra,
na pura e simples afirmação sexual,
essa asserção do engenho consensual
em que da alma o interior se flagra,
uma alvorada rubra se deflagra,
por mais que seja evento noturnal
ou realizado sob o sol casual
em que toda a natureza se conflagra.
E nesse instante de estranha aberração,
implode o egoísmo, em criminalidade,
quando milhões vêm-se lançados para a morte,
no masculino esguichar da lactação,
que à alma o ventre nos dá hospitalidade,
a desafiar por momento eterno a sorte.
O TEMOR DE THEMIS (29 MAR 12)
(Para José Carlos Teixeira Giorgis)
Entre os doze titãs, surge-nos Themis,
Irmã de Mnemósine, a Memória.
Do bom conselho e da ordem firma os lemes,
Considerada, através da longa história,
A voz dos deuses, cuja justiça temes,
Reverenciada na Grécia, em grande glória,
Filha de Gaia e Urano, a Terra e o Céu,
Presidindo às assembleias com seu véu.
Numa das mãos trazia uma balança
E na outra uma espada, em duplo gume.
Somente a lei divina nos alcança.
Previa o futuro com potente acume
E o Oráculo de Delphos, sem tardança,
Ergueu num dia, para mostrar o lume
Da justiça divina em cada feita,
Superior à dos homens, que é imperfeita.
Seu nome vem de tithemi, “colocar”
Aquilo que dos céus nos é disposto.
Não se dispunha aos homens castigar;
Se contrariada, para seu desgosto,
Chegava Nêmesis, ocupando esse lugar.
Mas sem obedecer ao humano gosto,
Era descrita com “encantadora face”,
Sem que nela a vingança se estampasse.
Defendia as familiares relações,
Sendo a família o pilar de uma cidade.
Aconselhou a Deucalião as plantações
Dos “ossos de sua mãe”; e a humanidade
Nasceu da terra, após as inundações
Que destruíram a antiga veleidade.
Themistopolói chamavam-se os juízes
Que os helenos convocavam em suas crises.
Themis casou-se com seu sobrinho Zeus
E sua primeira filha foi Astreia,
A “Virgem das Estrelas”, que aos seus
Ensinou a justiça... E a epopeia
Nos conta que retirou-se para os céus.
Hoje é a Virgem e Libra é sua candeia,
Pois marchava com balança luminosa,
Mostrando aos homens a lei reta e poderosa.
Sua irmã Diceia entre nós a substituiu,
Que é a “Justiça dos Homens”, inconstante,
Que o mal dos povos imparcial puniu,
Enquanto Themis amenizava cada instante
Que o julgamento das Moiroi urdiu,
Homens e deuses submetidos a seu guante.
Clotho tecia, Laquésis lia as sortes
E num sorriso, Átropos lhes dava os cortes.
Foi Hesíodo que pela vez primeira
Chamou Themis de “Justiça Divinal”.
Foi mãe das Horas, a “Exatidão Certeira”
E com Zeus teve prole triunfal:
Eunomia, da lei a “Ordem” derradeira;
Auxos, das colheitas o fanal;
Carpos, que das árvores traz os frutos;
Thallos, que nos dá os outros produtos.
E foi a mãe de Eirene, finalmente,
Porque a justiça deve trazer a “Paz”.
Com a Iustitia romana, claramente,
Tem diferença que a identificação desfaz.
Esta a Urbe personificava inteiramente
E o interesse de Roma apenas traz,
Com impassível rosto, na sua crença,
Imposta a venda tão só na Renascença.
CHINA I
Esperava por ti e não vieste:
mesmo avisado, havia uma esperança
de te ver ao portão mostrar a trança.
como outras surpresas me fizeste,
chininha linda, meu olhar não cansa
de recordar as vezes que estiveste
entre meus braços, beijos que me deste
e a luz bonita que em teus olhos dança;
mas não vieste: o mal sempre aparece
quando se espera; o bem custa a chegar
e o amigo mais fiel é o infortúnio;
a esperança só às vezes comparece,
tão impossível de se aquerenciar,
como eclipse solar ao plenilúnio...
CHINA II
Minha china tem cabelo preto e liso,
igual que o pêlo de uma mão-pelada...
Às vezes, faz a trança e, delicada
fica sua sombra no chão por onde piso,
andando ao lado dela; e assim lhe aliso
a curva do pescoço em branca geada;
então me olha, na expressão gateada
daquele olhar indiático em seu viso.
Sua pele é mais escura do que a minha,
as mãos têm calos da diária lida,
pés engrossados pelas alpargatas;
mas quando a vejo, percebo que é rainha
deste meu pago, senhora de minha vida,
como se fosse a deusa destas matas!
CHINA III
Quando se anda sob a luz do sol,
a sombra se projeta pelo chão:
é curta às vezes; em outras, é estirão
do sol da tarde ou à vista do arrebol;
a sombra é torta, se qualquer farol
a empurra nas paredes: é um brasão
que nos reflete o corpo e o coração
e nos adula qual ao peixe o anzol;
a da china é diferente: ela caminha
ereta e independente e se projeta,
forte e obediente contra qualquer muro;
e assim eu a acompanho à luz mesquinha,
sombra da sombra, que então me afeta,
bem menos negra que seu cabelo escuro.
EPITÁFIO
CONSELHOS, POR MELHORES, POUCO VALEM,
SÃO ACEITOS OU NÃO, SÃO ESQUECIDOS
OU RELEMBRADOS UM POUCO E JÁ PERDIDOS:
CONSELHOS MELHOR FORA QUE SE CALEM...
PORQUE CONSELHOS MUDOS PERMANECEM
DENTRO DE TI, DE FORMA PERMANENTE,
SENDO AS PALAVRAS MUDAS, MAIS PUNGENTE,
NO FUNDO DE TEU SER TE RECONHECEM...
É ASSIM QUE A ALMA A OUTRA ALMA ACONSELHA:
NÂO TENTANDO MOSTRAR O CAMINHO CLARAMENTE,
MAS QUANDO ENCETA A MARCHA, INDIFERENTE
A SER SEGUIDA - SE ALGUÉM SUA VIDA ESPELHA.
ESSE É O CONSELHO QUE A VIDA INTEIRA DURA
E ALÉM DA MORTE, ENQUANTO O AMOR PERDURA...
TAPERA I
Alguns dizem que a tapera,
testemunha do passado,
pegou fogo descuidado,
num inverno de outra era,
em que o pampeano era fera,
de um braseiro derrubado
sobre o poncho pendurado
pra secar deixado à espera
e que a força dessa brasa
que subiu pela bombacha
pegou fogo ao santa-fé,
se espalhou por toda a casa:
e o casal apenas acha
o tempo de dar no pé!...
TAPERA II
Outros dizem que, ao contrário,
durante a revolução,
um gaudério temerário
se entrincheirou no torrão
e ficou a trocar bala
(tinha muita munição):
sua garrucha não se cala,
nem escuta o capitão,
que sendo de mala cara,
para não perder mais gente,
pra se livrar do vivente,
que de atirar nunca pára,
pôs-lhe fogo no telhado
e o taura morreu queimado!
TAPERA III
Outros dizem que é só lenda,
que aqui morava um posteiro:
foi pra longe montar venda,
só de raiva do estancieiro,
que, abandonando a prebenda,
juntou porco e galinheiro
e que antes de entrar na senda
tacou-lhe fogo de isqueiro!...
Foi embora com seus trapos,
a mulher e os três piás,
montados num burro micho.
Por entre um monte de sacos,
sua sorte não é das más:
virou dono de bolicho!...
TAPERA IV
Também contam que, por briga,
um tal de pôquer jogando,
dos faroeste imitando,
em vez da carteada antiga,
tipo escopa, mais amiga,
nas regras não se acertando,
ou talvez mesmo zombando,
dois deles fazendo liga,
adagas foram puxando
e um dos outros, mais zangado,
sacou depressa a garrucha,
bala e pólvora espalhando,
tocou fogo no telhado,
que depressa o vento puxa!...
TAPERA V
Pois então, foi simplesmente
o ranchito abandonado:
foi por último habitado
por um negro sem parente;
de favor vivia o coitado,
ninguém queria o vivente,
morreu depois de doente
e nem sequer foi velado.
Muito despois o encontraram,
o santa-fé desmanchado,
um dos lados derrubado,
uns tropeiros que passaram
e o enterraram no chão duro,
queimando em cima o monturo.
TAPERA VI
Pra mim não foi nada disso;
não tinha mais serventia,
foi quase como feitiço:
a família que sumia;
a palha perdendo o viço;
nem sequer um gato mia;
a porta caiu por isso;
o vento dentro zunia;
o teto desmoronou;
foi se espalhando o torrão,
sem maior tenacidade
e a tapera que ficou,
bem me toca o coração,
pois morreu foi de saudade!...
SARAPATEL
Anos atrás a conheci e andava
na graça meiga de uma timidez
rosto lavado, em plena sencilhez
de quem sequer ao espelho observava.
Pensei que a alma apenas contemplava,
ao olhar-se nos vidros: todo mês
deixava-se escorrer, com altivez,
sem criar vida para a morte escrava.
Depois, mudou: escondia sua feiúra
em roupas coloridas; a alma impura
dispôs-se a revelar, cheia de pasmo,
pois decidira não possuir beleza,
não se sentia bela, com certeza,
passando a vida sem provar orgasmo.
RUÍDOS SURDOS
Às vezes, quando em busca de coragem
comunicar a quem, na vida dura,
confia em nós e conselho até procura,
acabamos por lhe dar falsa mensagem,
em tudo oposta ao que lhe pretendíamos:
tal conselho lhe constrange a liberdade,
acaba em transmitir fragilidade,
ao invés da resistência que queríamos,
pois cada um é fraco à sua maneira:
é inútil pretender tua fortaleza
passar aos outros; é tarefa individual
construir em si mesmo essa altaneira
dominação do mundo, na certeza,
de que tudo nos pertence no final.