LENÇÓIS DE ESPANTO I & MAIS
CLEPTOCRACIA IV
A vida traz lampejos de ocasionais lembranças,
nos momentos fugazes, em que a mente desconecta
por um instante apenas e logo se intercepta
o manto cortical, deletando as esperanças.
São borrifos apenas, trazidos do passado,
que pingam num segundo, sem razão, sem nada,
e, num piscar de olhos, tal memória é ejetada,
por mais que deveria ser vista com cuidado.
Porque essas, afinal, são memórias uterinas,
trazidas desse meigo, profundo e escuro asilo,
ou que assim devia ser, se bem que falhe, às vezes.
Que nem todas as mães são perfeitas ou divinas:
há mães de toda espécie e de diverso estilo,
ainda que suportem seu fardo em nove meses.
CLEPTOCRACIA V
Esse problema da imortalidade
é que não vem somente para nós.
Se acreditamos nela... coisa atroz!
também existe, em plena validade
para nossos inimigos! Na verdade,
preferimos o seu mal, que um algoz
hoje os castigue, os ponha sob as mós
e os esfacele com perenidade!...
Queremos ser eternos, mas não eles...
Que então recebam o maior castigo:
se vão sobreviver, que seja eterno...
Que a recompensa seja o nosso abrigo
e a punição se manifeste neles,
pois foi por eles que criamos o inferno!...
TELA DE TOQUE I (Dezembro 2006)
De fato, não importa em que lugar
você se encontre agora, mas aonde,
pelo seu próprio esforço, possa achar
esse sucesso que o futuro esconde.
Mas para isso, é preciso conhecer
aonde quer chegar, a qual destino,
qual resultado almeja receber,
ao toque límpido da mística do sino
que o convoque para o rumo certo.
Se nem souber aonde quer chegar,
qualquer lugar lhe serve -- e é qualquer
esse fadário que lhe será aberto,
não a meta que poderia conquistar,
mas somente o que o fado lhe trouxer.
TELA DE TOQUE II
Pessoas mudam, com frequência inesperada:
não são mais o que eram, com certeza.
Aquilo que atraiu, riso ou beleza,
desaparece em canção inacabada.
Mas quando vemos desse modo transformada
tal pessoa que se senta à nossa mesa,
não há motivo para que a incerteza
nos afaste de quem já foi amada.
Porque qualquer pessoa se transforma,
mas nem por isso se torna um novo ser:
muitas vezes, nem sequer é responsável.
Mesmo quando a distância é que conforma
o esfriamento de um amor, o seu poder
ainda perdura de forma imponderável.
TELA DE TOQUE III
Quem não controla as próprias decisões
será por elas sempre controlado:
são essas luzes que brilham do teu lado
e que te atraem para ondulações...
Assim orbitas ao redor dos corações
que te chamam a si, escravizado
por tal fulgor, que sempre fascinado
te mantém, por suas novas seduções.
E orbitas outra vez, até sabendo:
no momento em que abraço conseguires,
te queimarás em lábios que enlouquecem.
Fui inseto cauteloso, não morrendo,
apenas circulando os reluzires,
estranhas luzes, que no frio me aquecem.
TELA DE TOQUE IV
Aprenda com seus erros e tristezas.
Pelo menos, nunca tente difundir
sua amargura entre outros; saiba ouvir
e guardar para si suas incertezas.
As pessoas se iludem nas belezas
de versos e palavras. Contribuir
para essa trama lenta é produzir,
mais cedo ou tarde, uma série de baixezas.
Console sempre e nada espere em troca.
Quando ajudar, não espere ser amado
e muito menos por tal bem agradecido.
É agindo como adulto que se aloca.
sobre alicerces firmes no passado,
a construção do futuro pretendido.
TELA DE TOQUE V
Mais cedo ou mais tarde, aprenderá
que ajudar e acorrentar próximos são;
que, no momento de estender a mão,
sua escolha é livre... Assim, não deverá
esperar por eterna gratidão,
bem ao contrário. Pois quem ajudará
irá marcar a ferro e poderá
criar rancor mais firme que paixão.
Isto eu já vi. Quando um presente caro
dar decidi, por generosidade,
ocasião houve em que mal interpretado
por certo eu fui. Ofereci amparo
gratuitamente e pensaram ser maldade
esse presente que mal chegou a ser usado.
TELA DE TOQUE VI
Havia uma serpente matutina
enroscada na Lua, em plena glória;
seus feitos relatados pela história,
enregelada na luz que o Sol afina
e suaviza, em manteiga e margarina
ou em queijos de prata e merencória
papa de prata, limalha de uma escória
que metal nobre foi e agora ensina
unicamente o poder do magnetismo:
ao ímã aparas correm; junto aos polos
se aninham, conformando outra serpente,
numa implosão de metal e mimetismo,
desenrolando o papiro em estranhos rolos,
que tem, ao menos, um desfecho diferente.
TELA DE TOQUE VII
Não é nova a sensação. Já muitas vezes
bati contra as paredes, sem que portas
nelas abrisse, essas muralhas tortas,
em que deixei meu sangue tantos meses...
Em minha cela, convivo com minhas fezes,
longo produto de grávidas retortas
e as moldo entre meus dedos, folhas mortas,
para compor sonetos que até prezes...
Às vezes, penso poder abrir passagem,
mas vejo o sangue e a pele nas paredes,
marcas fetais em busca da miragem.
Contaminado eu fui pelas minhas sedes,
que me impedem de nascer, grossa trançagem,
que me emplacenta em reforçadas redes...
TELA DE TOQUE VIII
Abro o outlook e vejo, ao rodapé,
"Nenhuma mensagem nova" e desconecto:
mais um insulto ao meu pobre intelecto,
que ser reconhecido um dia, até,
pensou possível ser e teve fé
de poder alcançar melhor afeto
e escapar-se de ser prenda e objeto:
dos deuses um inseto, a seu sopé.
Mas não encontro na tela lenitivo,
pois só escrevem os que de mim precisam
alguma coisa de mim, que assim lhes desse.
E os enleios da Internet, em dom esquivo,
me negam mesmo o solo em que já pisam
e nunca encontro as mensagens que quisesse.
LENÇÓIS DE ESPANTO I
Vou despejar a luz no meu bornal,
como faço, ao final de cada tarde:
a sombra de minhas mãos o solo encarde:
dobro o manto de Apolo, no final.
Enrolo o dia, com fim proposital,
como lã branca que a memória carde:
a fúria do calor nos dedos arde,
revoltada em tal descanso vesperal.
Retiro então do alforje a meiga sombra,
que espalho pelos prados como um véu:
doce mortalha para meu descanso.
E a sola de meus pés sobre essa alfombra
ondulará, sob os reflexos do céu,
nesses espinhos de luz que agora alcanço.
LENÇÓIS DE ESPANTO II
Eu dançarei sobre a noite, lentamente,
evitando pisar sobre as estrelas,
que são rosetas essas luzes belas,
de tocaia em cada poça indiferente.
Guardo na bolsa a luz alvinitente,
enquanto, no veludo dessas velas
eu deslizo, cantando mil balelas,
até chegar à banda azul do Oriente.
Lá eu me agacho e consulto o coração,
medindo, com cuidado, esse frescor,
até da hora completar-se o rol...
Retiro a luz mantida em comunhão,
levanto a fímbria da saia do negror
e, a pouco e pouco, vou soltando o Sol.