AMOR DE CÂMARA XXIX & MAIS

AMOR DE CÂMARA XXIX

O ano já avançou, veloz e rápido

e se aproxima o triste carnaval:

não que me faça bem ou faça mal,

me é tão só indiferente seu momento,

em que respiro sexo no alento

dos antigos rituais do amor sensual:

é inconseqüente o seu desejo vápido,

em sua ânsia por culpa e por portento.

Da religião copiou a castidade,

que o sexo do ar mais lembra morte

do que alegria; e busco, desta sorte,

um refúgio musical e sem maldade,

que assim me fortaleça e não me mate

fazer amor ao som de Zarazate.

CRIOULO VI

Homem, não penses seres tu que me dominas,

ou que me domas e me curvas ao que queres;

condescendência seja o que me esperes:

somos parceiros de parelhas sinas!...

Eu envolvo tuas rédeas com minhas crinas

e apenas julgas que vou aonde quiseres:

só te obedeço enquanto não me feres

e não é com teu freio que me empinas!...

Sou mais livre que tu, como aonde vou

e não preciso de casa, nem dinheiro,

nem tampouco dessas pilchas do teu luxo!...

Não me criaste, homem, sei quem sou:

serei crioulo sem ter o teu potreiro,

porém, sem mim, jamais serás gaúcho!...

AMOR DE CÂMARA XXX

Quando ouço as aves que uma orquestra imita

e me invade o seu prazer intelectual,

minha alma a um novo rebrilhar concita

de uma resposta forte e emocional;

nessa abordagem multi-sensorial

que tenho pela vida, assim crocita

a meu redor seu dom imaterial,

sem que tenha bem certeza se essa grita

seja real ou fruto imaginário

das redes quânticas de esplendor neural

que constituem meu ego multifário,

nessa expressão quase anti-natural

da vibração do mundo, que me obrigue

a amor fazer aos acordes de Respighi.

AMOR DE CÂMARA XXXI

Não são pérolas meus versos neste agora:

eles voltam a brotar insatisfeitos,

pelos anos de espera contrafeitos,

pela delícia vã de ser outrora,

antes que possam ser um doravante:

não mais se formam de um amor presente;

que tal soar sinfônico apascente,

porém não mais se mostre exilarante;

são versos mais pesados, ponderados,

não por amor ou por pendor sexual,

mas por sérios pensamentos impelidos,

nessa audição de tons amargurados,

que me reveste de um olor plurisensual,

fazendo amor com Grofé aos meus ouvidos.

AMOR DE CÂMARA XXXII

VELANDO o sono dos mortos,

VINTE olhos de esmeralda,

VERTEM sangue, que se esbalda

em ribeiros VERDES tortos...

VAGAS órbitas de abortos,

VIVEM crânios sobre a falda,

VERMES vagam nessa calda

dos VAZIOS, verdes portos...

nas VESTES mofo de antanho,

VERDES corpos oxidados,

nesse VASTO e negro toque...

faz-se amor em VISGO e banho

dos acordes VERMELHADOS:

VERDES gritos de Bartók...

CONTA DE LUZ

Se amor te dei, em poeira de alvorada,

foi por te querer bem, não por egoísmo;

não me afoitei ao brando catecismo

da sedução vulgar da namorada...

Agi à minha maneira, em voz de abismo,

que só lançava um eco à tua morada,

por que me retribuísses, encantada,

sem incorrer jamais em solecismo...

Mas de nada adiantou, sempre distante

permaneceste atroz, luz matizada

pelo verde das folhas circulada,

Qual mil moedas na relva palpitante;

quem se ajoelhar, não pode apanhar nada:

são moedas de luz, em verde instante.

MODINHA

Mais me alegram tuas ausências

do que te ver por aqui:

quando eu sei que não te vi,

imagino tuas anuências

a meus desejos de outrora,

quando amor era um botão:

quando tocava com a mão

teu rosto, naquela hora...

Então, gozava dos beijos

que agora nunca me dás

e contigo suspirava...

Mas negaste meus desejos

e, ao saber que perto estás,

sinto meus lábios em lava...

REGRAS DA VIDA XLIX-a

A culpa pelos bons só é sentida:

por quem possui consciência delicada;

os insensatos não percebem nada

e sem remorsos cruzam pela vida.

Arrepender-se, pois, é dar guarida

a um coração de moral aprimorada;

apenas pela dúvida é afetada

a mente pura, em ética mantida.

Desse modo, não te rendas ao tormento

de uma ação que te possa dar vergonha,

nem te acrescentes uma segunda pena.

Quem se reprova por um só momento

merece já o perdão com que antes sonha

e não o ardor que a si mesmo se condena.

TELEFONANDO POR DOENÇA

Hoje o sol se acordou com dor nas costas

e mandou telefonema para o dia,

avisando que não trabalharia,

senão ao vento as deixaria expostas...

Mas as ordens do dia logo impostas

lhe foram -- por email conseguiria:

que ligasse a banda larga e poderia

suas tarefas cumprir pelas encostas...

Pobre do sol! Com dor nos rins, sofrido,

a resmungar contra a droga da Internet,

lançou ao mundo luz acinzentada,

enquanto o pago continuava umedecido

pela neblina, em revoada de confete

a se aquecer com a cuia da mateada...

REGRAS DA VIDA L-a

Li, certa vez, que uma greve, de repente,

interrompeu o movimento do metrô

parisiense, cujas grades em art-nouveau

embelezam ainda essa imponente

cidade, mencionada pela gente

como sendo a mais bela em nosso mundo;

o povo, preso ali, faz-se iracundo,

aos empurrões e gritos, impaciente.

Uma senhora, porém, disse a um menino,

certamente seu filho, em tal momento,

"Isto é, querido, o que chamamos de aventura."

Por controlar seu medo repentino,

nessa ocasião de vasto agitamento,

ao demonstrar quão longe o amor perdura.

ARAGANO I [para Tristán Riet]

O pampa de antigamente era terra de tropeiro:

trotavam pelas estradas no meio da polvadeira,

arrepanhando reúno, aboiando a tropa inteira

e a cuia já lhes servia para a canha e o carreteiro;

ao meio-dia, entretanto, só pra erva do mateiro:

sesteavam sobre pelego ou por riba de uma esteira,

o pingo quieto do lado, no calor da mormaceira,

até chegar na invernada, no seu canto de potreiro.

Mas chegou a ferrovia e o destino desse andejo

foi depressa se encurtando: nesses pagos alambrados

só levavam as tropilhas para subir nos vagões...

porque os trilhos e o vapor levavam muito mais lejo...

o gado se cansa menos nos caminhos asfaltados

e hoje em dia a tropa inteira só anda nos caminhões!

ARAGANO II

Pela época da esquila, se aprochegava o aragano,

acostumbrado ao trabalho e era logo contratado:

respirava o pó da lã, era bem alimentado,

com a carne das ovelhas churrasqueadas nesse ano.

Ou então vinha a comparsa: trabalhava mano a mano

com os seus velhos amigos, dava o serviço encerrado

e partia pela estrada, sem ser sindicalizado,

sem ter carteira assinada, seu direito era o minuano.

Mas veio a eletricidade, toda a esquila demudou,

dissolveu-se a parceria, o aragano experiente

não era mais contratado, qualquer guri duma estância

usava a tesoura nova, depois que a luz se instalou,

sem machucar os ovinos e o andejo, de impotente,

perdeu o mate e os pilas, perdeu toda a sua sustância!

William Lagos
Enviado por William Lagos em 24/09/2011
Código do texto: T3239099
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.