AO VER NA PALMA AS LETRAS QUE QUIS LER & MAIS

ao ver na palma as letras que quis ler.

AMOR DE CÂMARA XXIX

Se encontra uma doçura insuspeitada

no olhar sorrateiro da mulher,

quando avalia, para ver se quer

aceitar que a desejem por amada;

mas a doçura não se lança fora,

em direção ao homem, mas a si:

é um olhar para dentro, bem ali,

onde peneira encarnações de outrora,

a recordar se já foi antigo amante,

nos séculos de antanho, quando a dor

os separou, na memória que se perde

nas espirais de helicônia delirante;

e a decidir se algum dia fez amor

com melodias de Claudio Monteverdi...

CONTRADIÇÕES

Não vou falar do odor de teus cabelos,

nem dizer para o mundo a cor que têm:

esse é um segredo para mim também,

que tantos já guardei nos meus desvelos.

Não falarei como os lábios são singelos

ou que os olhos me prendem, porque vêem

fulgir-me o coração; digo, porém,

que existe muito mais do que olhos belos.

É o que vejo por trás deles que persegue

meus sonhos nessas curtas madrugadas,

quando me deito, os galos a cantar...

É a mente pura que, bem fundo, segue,

a me assombrar e que desfaz em nadas

quaisquer resoluções de me afastar...

FALL-OUT

A bomba cairá, mais cedo ou tarde:

as instruções se encontram na Internet

e a radiação cairá, como um confete;

quando não mata, a queimadura arde,

em dor terrível: primeiro faz-te cego,

depois te paralisa e te desmancha

por dentro, em veneno que se arrancha

dentro de ti e não te dá sossego,

durante a morte lenta... tal como faz amor,

que não te mata logo, contudo paralisa

a tua razão, te cega e te condena

a definhar aos poucos... seu pavor,

a escorrer dos ossos... e repisa

sua exigência, enquanto te envenena.

RÓTULAS

Vou transformar meus meniscos em moedas

para comprar o amor que não foi dado

como gratuito dom, nem derramado

sobre meu cenho, por mais que me concedas

que precisas de mim, mesmo que quedas

as tuas emoções persistam; descuidado,

transformarei meus ossos em recado,

que lançarei ao vento em que segredas...

e jogarei às nuvens meus pulmões,

para transportes de idêntico momento

ao que foi nos mistérios murmurado...

nessas joelheiras de minhas ilusões,

onde escondi, no mais estranho alento,

o antigo sentimento inconfessado.

POBRE É A MENSAGEM

A estrela luzia, argentemente,

nos céus da Palestina; e, sobre a gruta,

uma canção angelical se escuta,

de toda voz humana diferente...

A melodia inspira a pobre gente

a fazer de seus rebanhos a permuta;

e a luz desperta o ideal na mente arguta

dos astrólogos, chamados "Reis do Oriente".

Uns e outros já foram decantados

durante mil natais, em versos nobres,

cuja lembrança da memória tiro...

Fico a pensar nos poemas relembrados...

E os meus, ao comparar, vejo tão pobres,

que a mim me resta apenas um suspiro...

NOOSÍNCOLA [habitante do mundo do pensamento]

Não é momento para amor revolto,

em longa espera, sem que benefício

se apodere de mim. É meu ofício

trabalhar muito, em despertar envolto...

Nem sei o que é dormir a sono solto

há milhares de dias: panifício

dos que dispõem de pouco malefício,

tal qual em mim é sempre desenvolto.

Em meus longos trabalhos e deveres,

os dons do espírito e o querer sexual,

é que sempre se limitam os prazeres:

preferindo a ter honras, liberdade,

sem desejar a fama ou por social

posição, que é forragem da vaidade.

MOSTEIRO

Vou perfurar minhas unhas com agulhas

e provocar aguda uma dor física:

sempre uma forma de esquecer a metafísica

e colocar os pés no chão, deixar as bulhas

que permeiam minhalma, tantas tulhas

de sentimentos tão contraditórios:

grãos de cereais em versos transitórios...

Bem lá no fundo, quando me vasculhas

podes bem ler a oculta podridão

que existe em cada mente, essa loucura

que nos leva a cometer os desatinos;

e, todavia, eu me voto à excursão

nos verdes prados da elegia pura.

em que dobram meus versos como sinos.

HIPNAGÓGICO [alucinatório]

Sempre a higiene é coisa cansativa;

atividade entrópica: escovas os teus dentes

apenas por deveres mais freqüentes

de nova escovação... repetitiva

o quanto pode ser e até abrasiva,

pois quando escovas, os dentes repelentes

se tornam por desgaste, concorrentes

com o desgaste das escovas. A coisa viva

se renova com o tempo, mas são mortos

os pobres ossos com que sorris ao mundo

e é como se vivesses num cadáver:

cabelos, barba, pele, são abortos

que descamas pelo espaço, no infecundo

sonho induzido por sementes de papáver... *

[*papoula]

ESPECLORAMA [luneta de espelhos]

Eu te contemplo, mulher caleidoscópica,

em mil rosáceas reveladas pela luz...

Quando sacodes, mudas... Hipnótica

de cores abstratas... Que seduz

ainda mais na doçura irrefletida,

como modelo de mil fotografias

que não são tuas; ou na fala repetida

da voz que escorre ao ritmo dos dias...

Cometa e estrela, pura de inconstante,

só permanente na fixidez escusa

com que alteras os reflexos de enlaces.

Nesse cambiar de panóplia delirante,

foste vampiro e anjo, lâmia e musa

no projetar perpétuo de mil faces...

McNADA

Procurei ver o Cometa McNaught,

sem nada conseguir. Mas não afirmo

ter ido em busca dele, em convescote,

lá no alto de um morro. Nem confirmo

ter viajado a qualquer ponto distante

das luzes da cidade, de onde o visse,

quando sua longa cauda de brilhante,

destruindo a si própria, refulgisse...

Fiz diferente. Só olhei de minha janela:

busquei felicidade em meu jardim,

como o Pássaro Azul de Maeterlinck.

Mas com busca de cometas não se brinque:

crepuscular sorriu-me a lua bela,

depois que a luz do sol fugiu de mim...

{ Naught = Nada. E a busca do Pássaro Azul da Felicidade só se concluiu com o retorno ao lar, em cujo jardim ele cantava. }

VIGIA

Esquadrinhei os céus, não vi cometa,

embora todos me dissessem

tê-lo visto;

e, em várias noites, ao firmamento insisto,

sem nada ver, senão essa completa

teia de estrelas, que abriga

meu destino...

Esquadrinhei a vida por carinho

e nada vi; e embora esse vizinho

povo, a meu redor, mostrasse

o cristalino,

assanhado borbulhar, felicidade

quase fácil de achar, mesmo transiente,

o bimbalhar alegre desse sino

apenas escutei bem raramente,

vendo o carinho, somente peregrino,

passar por mim depressa e sem saudade.

MUTAÇÃO

Portanto, vou esperar que me retorne

esse risco trepidante pelos céus;

em cem mil anos, erguerei os véus,

até que a luz, enfim, meu rosto adorne.

Por agora, seja a tela que me informe

do espectro de luz que nunca vi,

ou, quem sabe, há cem mil anos conheci

e a memória do passado me transtorne.

Terei sido pouco mais que um troglodita,

catador de raízes ou de frutas,

que ergueu os olhos, de assombro marejados.

Ou talvez, um morador de palafita,

junto a meu clã, de cócoras e às escutas

da voz dos deuses, em coros extasiados...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 19/09/2011
Código do texto: T3229486
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