RODA-VIVA & MAIS
RODA-VIVA
Basta apenas que tenha mais um tempo,
que me sobrem minutos de atenção,
que diminua um pouco a sugação
diária de minha vida, em contratempo,
que não me exijam tanto, que não queiram
tirar de mim o sonho e o pensamento,
que não me esgotem todo o sentimento
ao ponto que do cerne se me abeiram,
para que os versos fluam, em torrente,
mais do que antes, ao me tornar forçado
à quota semanal [vinte sonetos]...
E eis que agora me vejo até impotente
para limpar rascunhos, superado
por cornucópia de poemas insurretos...
[ESTE FOI O SONETO NÚMERO 29 DESSA SEMANA].
ESGOTOS
Escrevo até poemas no banheiro,
sentado sobre o vaso sanitário.
Mas o cheiro não te chega, sorrateiro,
mesmo que os versos mereçam tal fadário.
Igual ao "eu fecal" que, multifário,
derramo a cada dia, sem primeiro
examinar o valor de tal calvário
de sacrifício pleno e derradeiro...
Do mesmo modo que abandono fezes,
lanço ao mundo poemas em montões,
puxo a descarga e a água os impulsiona...
Sem me importar que, em todas essas vezes,
lance fatias de minhas ilusões
às cloacas de um mundo que ressona.
DULCIDEZ
Doidas são as palavras que te digo:
doídas são; palavras que me escorrem
de uma artéria aberta, que recorrem
diretamente da aorta, sem perigo.
Porque à medida em que o sangue assim escoa,
o tutano de meus ossos cria mais...
Pois tal amor não se acabará jamais,
como o espaço é infinito e o tempo voa.
São doidas estas linhas que concebo:
são doídas, porque espalham o segredo
contido no meu líquido espinal...
São meus nervos que fluem, quando bebo
a taça amarga deste meu degredo,
num fulgor absíntico e final.
ICONOCLASTA
Ela subiu ansiosa, aquela noite,
querendo amor, até meu escritório.
Nunca antes me aceitara o peditório
de me encontrar ali, em meigo afoite...
Quando chegou, acolheu-a como açoite
uma visão totalmente inesperada:
Callíope, minha musa, que abraçada
se encontrava comigo, em puro acoite...
Agarrou-lhe os cabelos de cimento,
bateu-lhe o rosto, num assalto vil,
que a pobre estátua deixou despedaçada!...
Empurrou-a depois, feroz momento
e assim a contemplou, "leve e sutil",
vendo o pescoço quebrado, ao pé da escada...
HORMONIA *
Não quero ouvir-te jurar fidelidade,
nem pretendo te jurar ser infiel.
Juremos antes plena liberdade:
quem for sincero, assim será fiel.
Vamos jurar apenas, um à outra,
que ciúmes não teremos, mas apreço.
Casos de amor são simples adereço,
porém não amarei a mente doutra.
Quero somente saber que me precisas
mais do que a outros, quando houver saudade,
Confiante que em qualquer necessidade,
estarei a teu lado, se me avisas...
Porém de ti... não espero isso sequer:
tua mente é pura, mas o corpo é de mulher.
* [Hormônios e harmonia].
ÁGUA DE CHEIRO
Este é um amor perfeitamente impuro,
solene em sua magia vampiresca,
insidioso em sua saga mais burlesca,
pois muito mais me exige do que juro.
Meus valores jogados no monturo
dessa conversa assim, novidadesca,
serpentina também, carnavalesca,
feroz fadário de esplendor bem duro.
Amor que exigiu tanto desta vida,
malbaratada na exigência requerida
dessa atenção funesta que reclama.
Porque perante tal amor não sou enérgico,
sou indolente, timorato, sou alérgico,
como a acha de lenha teme a chama.
OBRADOR
Eu mesmo que pedi: pedi aos deuses
que mais trabalho nunca me faltasse,
embora a meus ouvidos sussurrasse
uma voz tímida:
"e não queres amores?"
Eu preferi lançá-la ao mar de adeuses
e respondi à voz, que me deixasse.
Tendo trabalho, talvez amealhasse
o suficiente a despertar sexores...
Tem sido assim. Trabalho não me falta
e me esforço, dia e noite, em traduções.
esfalfo-me, de fato. E distrações
encontro apenas nesta faina alta
de versos rabiscar, sem ter sequer
nesgas de tempo para amar qualquer...
METODOLOGIA
Promessa não te fiz de amor eterno.
De fato, nem recordo que promessa
eu tenha proferido, salvo em versos
de sabor capitoso e tanger terno
nas cordas meigas de teu coração.
Foi só aos poucos que a amizade mais espessa
se foi tornando, por eventos tão diversos,
gota após gota, em bênção de emoção.
Assim, nem sei qual palavra responder
quando me indagas afinal se predomina
só o desejo de a outro corpo pertencer
ou se é amizade pela alma feminina...
Somente sei que a mente me domina
um sentimento que mal pude entender...
A MÓ E O ARIEL
Nem sempre amor são gozos. São sevícias,
a cada vez que exigem mais labores.
Tempo não sobra a conquistar amores,
suas artimanhas, seus dotes, suas malícias.
Assim espero, sabendo ser em vão,
que me busquem primeiro e se disponham.
Por mais estranho seja o dom que sonham,
a se me abrirem primeiro o coração.
E fico assim, olhando de soslaio,
imerso em meu trabalho, sorrateiro,
como um rato que livro raro rói,
que amor me caia ao colo, qual um raio
de luzes fulgurantes, tal moleiro,
vendo o tempo que minha vida sempre mói.
COGULAS [hábitos de monges]
Aquela a quem mais quis se encontra longe
quando se encontra perto e, às vezes, perto
é que mais longe está, qual no deserto
miragem que se avista. É como monge
que perde a castidade e mulher sonha;
faz voto de pobreza e quer ter bens;
e se rebela contra a regra, nos poréns
do voto de obediência, no qual ponha
a razão para todo o sofrimento
que lhe perpassa a alma, sem remédio,
sem perceber que, no fundo, é apenas tédio
de repontar-lhe o mesmo pensamento:
de que aquela a quem ama está distante,
por mais perto que se encontre em tal instante.
CORNUCÓPIA DA PENÚRIA
Meu caro Baudelaire, no meu jardim
crescem "flores do mal": são azuladas
as cornucópias; por fora, são rosadas,
estuantes de silêncio para mim...
são belas estas flores... morrem logo,
mas outras brotam logo do cachopo;
ao morrer, são só rosa, como um copo
que se fechou; mas tal um pedagogo
de rancor cheio, escondem sua beleza,
estendem para longe suas gavinhas,
porque se expandem desmesuradamente;
recobrem outras plantas, suas vizinhas,
e matam os meus sonhos, com certeza,
qual me sufocam a luz dentro da mente.
DESCONGELO
Somente agora vejo no meu rosto
as marcas leves da mortalidade,
porque torno a viver. Criogenidade
lavou-me os velhos anos de desgosto.
Assim, era perfeito e conservado,
porque não tinha ideal, buscava nada,
apenas trabalhava e minha escada
descia lentamente, descuidado...
Só agora um novo impulso despertou:
uma energia atroz, essa esperança,
que me faz crer que há luzes no caminho.
Mas a busca dessa luz avelhantou
meu rosto e corpo, antes sem mudança,
pela consciência de me achar sozinho.