MERETRIZ DE RUA (SCORTA ERRATICA) & MAIS

SCORTA ERRATICA [nova versão]

A pele como um lírio, os lábios liquefeitos,

de cristais petalados os olhos inocentes...

As pálpebras cerradas por vezes tão freqüentes,

ao se achegar a mim... Os rutilantes leitos

das orelhas para o sono de meus versos...

A língua a retraçar perfumes de carinho,

até mesmo o nariz, que arfava, de mansinho,

ao escutar de mim os sonhos mais perversos...

Rosto de anjo, em todo o seu encanto,

até que o assentimento viesse, enfim,

à conclusão deprimente, mas arguta,

em minha alma, enrugada pelo espanto:

que essa mulher chegasse para mim

pura de carne, mas em mente, prostituta...

"Scorta erratica", naturalmente, era o nome que os romanos davam às meretrizes de rua...

QUERELAS

Chegou o tempo de falar desta mortalha,

cortina ou colcha em que fui envolvido,

como o desejo é, às vezes, compreendido

da forma mais alheia e se enxovalha...

Então se põem a inaugurar batalha

por um trabalho de anos empreendido,

uma diz que só amor está contido

nessa coberta por que sua vida espalha...

Outra pensa que, ao contrário, tudo é dolo,

nem tanto pelo mal, mas a interferência

que enroscou sua vida em mil baraços...

Talvez só eu perceba quanto é tolo

esse embate infeliz, nessa aquiescência

de ver no rosto da outra os próprios traços.

A FILHA DE APOLLO XIX

Alguns suportam longas situações,

sem nem saber porquê, por tantos anos,

até que se acumulam desenganos

e então, rebentam, lá nos corações,

inesperadas fibras, sem ruído,

sem mais alarde, em vago sentimento,

elas se partem, explode num momento,

aquele fio que já estava a ser puído...

O mais estranho é que isso só acontece

onde existiu amor, profundamente:

são os cristais mais valiosos que se quebram...

A dor aumenta, enquanto angústia cresce,

são claras emoções que mais se entrevam

e se esfacelam... de forma permanente.

AS JOVENS DE ROMA LXIII

LAENELLIA

EU NÃO LAMENTO DE MODO ALGUM SURGISSE

O QUE ENTRE NÓS SURGIU POR UM MOMENTO.

SE HOUVESSE DE SURGIR UM SENTIMENTO,

ENTÃO FOSSE O DE AMOR QUE NOS URDISSE.

EU NÃO LASTIMO O FATO ACONTECIDO,

TAL COMO ACONTECEU: FOI PLANEJADO,

NÓS DOIS QUISEMOS E FOI BEM DESEJADO

QUE ACONTECESSE TAL ENCONTRO PRETENDIDO.

AGORA RESTA PENSAR SÓ NO FUTURO,

SE SE HÁ DE REPETIR ESTA BONANÇA,

OU SE DELA RESTARÁ TÃO SÓ LEMBRANÇA.

MAS DE UMA COISA, ENFIM, ESTOU SEGURO:

FOI UM ATO DE AMOR, NÃO FOI CASUAL

E, SENDO ATO DE AMOR, FOI IMORTAL.

REGRAS DA VIDA XL

Para todos existe um lar seguro,

um porto de invernada, onde a borrasca

é defendida por molhes e a nevasca

não se acumula, gelada, sobre o peito.

Para todos existe um sonho puro,

em que se foge da real tarasca

que é a vida e não nos corta a aguda lasca

da inveja dos outros e despeito...

Olha bem para ti, vê qual é o teu,

esse lugar que recordas, com certeza,

antes de te perderes pela vida.

Ou senão, eu te convido para o meu:

fica no meu coração, mas há beleza

em partilhar contigo tal ermida...

REGRAS DA VIDA XLI

O mundo vem buscar, freqüentemente,

um pedaço de ti, sempre quer mais.

E, se deixares, não terás jamais

um só momento teu de permanente.

Constrói então um círculo ao redor

de ti e bem demarca teus limites.

[Nem a quem amas penetrar permites,

depois de tais fronteiras pressupor.]

Porque são tuas: é o espaço teu, sagrado,

em que ingressar ninguém terá poder,

nem insistir em tirar de ti vantagem...

Então restaura o coração atribulado

nesse cerne de ti mesma, em teu dever

de a ti prestar a primeira vassalagem...

PICADAS

Se te farei sofrer, não quero mais

o meu amor de víbora, a peçonha

que em ti derramo, no amor que ponha

o meu prazer, sem retribuir jamais.

Se dor te causarei e for demais,

contrario meus anelos: que deponha

prazer o meu amor quanto ela sonha:

centelhas de ilusão em mil torchais...

Pois sempre foi o que mais me atrapalhou:

que assim sofresses dor, enquanto davas

o gozo multicor e me aliviavas,

por um breve momento, o meu sofrer...

Mas que prazer teria, se não dou

um gozo igual ao que me faz viver...?

PELÚCIA

Prefiro ser magoado que ferir.

Primeiro, por estar acostumado,

porque sensível sou, mas calejado

de antigas mágoas: de que posso rir...

Mas sei que outros não têm esse talento.

Às vezes, sem querer, sou magoador

e causo o mal, buscando dar amor,

por mais pureza tivesse em pensamento...

Isso porque aprendi, no sofrimento,

a transformar desejos em poesia.

Poucos conseguem sublimar humilhações.

E julgo então, no meu ressentimento,

que os outros são iguais, mas como é esguia

essa pele que protege os corações!...

REGRAS DA VIDA XLII

O que mais vale na vida é a qualidade

e não o preço que vais pagar por ela.

Enquanto não tiveres liberdade

de comprar a tessitura de uma estrela,

não te contentes com luz fluorescente.

Economiza, luta, até que possas

adquirir aquilo em que te endossas

como sendo o desejo permanente...

Assim no amor, procura o mais real,

o duradouro e não o sucedâneo

e não abraces tão só por solidão.

Amor não é somente um festival:

é para a vida inteira o sufragâneo

de ti, que te preencha o coração!

CUIDADOS

Não há palavra mais longa do que "sempre",

nem som mais breve que a palavra "nunca".

São palavras sem rima, não se cumpre

tempo mais longo que sempre e nem se junca

por mais que se acumule no "jamais",

tempo mais curto... Exceto no "talvez",

que nem sequer é tempo, nos anais

da eternidade, pois em tempo não se fez...

Porque o "sempre" se espera ser eterno,

enquanto o "nunca" se julga nem sequer

viver no tempo inteiro... Ou no "também".

E assim eu fico, em tom amargo e terno,

pois sempre hei de querer essa mulher,

mesmo que nunca venha a ser "meu bem".

DEALBAR

Tudo acontece quando ocorrer deve,

nem antes, nem depois, sem qualquer dúvida...

a cornucópia só se mostra túrgida

quando a inclinam os deuses, numa breve

e risonha carícia caprichosa...

se ocorrerá de novo, nem te atreve

a prever, pois são cristais de neve,

hexágonos de luz semi-preciosa...

Essa é a graça dos deuses. Se concedem,

é quando querem e não quando desejas:

estende as mãos e colhe as chuvas mansas...

E beija o sol, quando os raios se despedem...

não importa se a miragem nunca beijas,

tens a lembrança dela e não te cansas...

TECLAS VAZIAS

No meu computador, vejo um castelo,

ao fundo de um gramado ensolarado...

Mas me encontro na sombra, deste lado,

e jamais pertencerei ao quadro belo...

Foi assim com meu amor. A moradia

ficava entre mensagens demoradas...

No frio da noite, por dedos digitadas:

apenas letras... Seu rosto nunca via...

Mensagens tristes, belas, amorosas,

cheias de vida, frias, caprichosas,

ensimesmadas num fulgir de egoísmo...

E eu construía, com todo o simbolismo,

nas sombras eletrônicas, mansão,

em que hospedava meu tolo coração...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 24/08/2011
Código do texto: T3180406
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