O Gravhaug: Uma lenda nórdica

(A Beatriz Uchôa)

I

“Deponha tuas ferramentas, meu amado,

E cessa de obrigar teu cérebro a pensar

Em rimas, versos – o que for; está cansado,

Vejo-o em teu semblante. Venha se deitar

No aconchego de meu seio perfumado,

E se fores bonzinho hei de te contar

Um velho conto – uma lenda imemorial

Dos gelados confins de meu país natal.”

II

Assim me disse, à iminência do anoitecer,

Após passar o dia a trabalhar em vão,

Minha bela Anastasia – a única mulher

Em cujo entorno orbitam minha inspiração,

Alma e mente. E, se ela manda, obedecer

Como seu servo devo eu com prontidão;

Portanto, tomos e papéis abandonei,

E minha cabeça em seu colo repousei.

III

Como quem acalenta um recém-nascido,

Falava de modo terno, angelical:

“Do Norte, do longínquo Norte, meu querido,

Daquela terra inóspita, glacial

Onde Bóreas reina, incontestado e temido,

E caminham ainda entre o reino mortal

Nossos deuses de antanho – Thor! Freyja! Odin! –

Do Norte, do longínquo Norte foi que eu vim.

IV

As primaveras de meus dias de menina,

Passei-as num idílio quase que eterno

Numa vila tão pacata e pequenina –

Como amigos, só meu pai – e o inverno.

Hoje lembranças… Mas ainda me fascina

A sombra de meu pai, e seu semblante terno,

As casinhas pequeninas (e quase iguais)

E a luzir nos céus as auroras boreais.

V

Mas, se ao norte partires em caminhada,

Verás, nos confins da vila, uma estranha

Cena: magnânima, estoica, imperturbada,

Ergue-se, sepultada em neve, uma montanha.

Se ousares conquistá-la numa escalada,

Verás, em seu cume altivo, outra estranha

Cena: um crucifixo lá foi erigido,

Obra de arquiteto por nós desconhecido.

VI

E que fina obra! De ouro foi lavrado,

Com intrínsecos detalhes a adorná-lo –

Impossível por mão humana ser moldado

E mais ainda em tal altura colocá-lo.

A nós igualmente nos é ignorado

Qual foi a primeira boca a batizá-lo

De Gravhaug – o SEPULCRO – tal colossal

Monte envolto em mística aura divinal.

VII

Há uma lenda, porém, bastante difundida

Nas regiões próximas de onde nasci

Que o tenta desvendar – deveras divertida,

Como o são as lendas. Eu mesma a ouvi

Milhões de vezes – e agora será ouvida

Pela primeira, como um prêmio, por ti…

Se é verdade ou mentira, invenção ou memória

Fática – que importa? Bela é a história.

VIII

Pois bem! Contam que, muito antigamente –

Com mais precisão, no tempo medieval

(Desnecessário o dizer, pois, obviamente,

Vêm de lá todas as lendas, afinal) –

Sendo o Homem ainda puro o suficiente

Para flertar com o Sobrenatural,

E as ímpares belezas do credo cristão

Fundiam-se ao nosso folclore pagão,

IX

Esta mesmíssima vila já existia,

E de lá para cá viu esparsa mudança.

Ora cumprindo a rotina do dia a dia,

Ora a se divertir numa alegre festança,

A nenhum mal aquele povo conhecia –

Desta forma em sua interminável dança

Tão tediosa, girando ao próprio redor,

Fazia o Tempo o que sabia de melhor.

X

Mas é mister que eu descreva nossa heroína;

De outra forma, haveria de me alongar

Em demasia – será uma reles menina

Que tão grande papel vai desempenhar

Nesta história. Inocente, pequenina,

Quem seria capaz de adivinhar

A desgraça que acabaria lhe ceifando –

Ora! A curiosidade estou lhe atiçando?

XI

Muito que bem…! Não haverei de torturá-lo

Com suspense, meu querido – sendo assim,

Do melhor modo que puder hei de pintá-lo

Um retrato da bela garotinha, enfim.

Apenas deixe-me mais forte abraçá-lo –

Chegue cá mais perto – mais perto de mim –

E refresque com teus beijos minha memória,

Se queres que prossiga com a história.

XII

Pronto – pronto, meu amor… Sigamos. Matja

Era como se chamava a garotinha.

Se era gorda ou magra – alta, mediana ou baixa –

Ninguém sabe… Mas, quando pequenininha,

Em brincadeiras dizia papai que a acha

Similar a mim – cinco anos então tinha,

E de tal modo assim passei a desenhá-la

(Se o quiser, pode de outro jeito enxergá-la):

XIII

Tinha cinco anos (tal como eu então;

A uma garota idade tão deliciosa…!),

Cabelos tão negros quanto alcatrão

E bochechinhas tingidas de cor-de-rosa.

No âmago de sua alma ainda não

Semearam a parasítica, cancrosa

Flor da descrença – portanto, só magia

E belezas com seus negros olhinhos via.

XIV

Por todo um lustro de sua breve vida

Nada além daquela vila conhecia,

Mas que lhe importava? Tinha uma querida

Família que a amava, e lhe provia

Com carinhos e mimos – sua breve vida

Por todo um lustro foi uma melodia

Singela, delicada – tal como a minha,

Em meus tempos já distantes de garotinha…

XV

E tal melodia teria perdurado

Se não fosse por uma triste verdade:

Tanta gente há, de coração gelado,

Que, alheia ao doce toque da Bondade,

A tudo e todos vê de modo amaldiçoado

E sua fonte única de felicidade

É poluir as Alegrias, e invejar

As coisas das quais não podem compartilhar;

XVI

Como as notícias viajam rapidamente,

A existência da feliz vila se espalhou

Até mesmo pelos confins do reino ardente

Que Satã, em seu orgulho, edificou

Para competir com Nosso Senhor vãmente.

Tão logo o soube, zangado esbravejou:

‘Riem às custas de minha infelicidade?

Lesto verei se é isto mesmo verdade!’

XVII

O melhor dentre seus disfarces escolheu

E, entre furioso e ávido, à Terra subiu.

Por toda a vila andou – ninguém o percebeu –

E ante o tão agradável quadro que viu,

Espumando de ódio, o sangue lhe ferveu –

Mas, pensando no mal, acalmou-se e sorriu.

Já que tal era sua única alegria,

Um mal àqueles inocentes causaria.

XVIII

Pensou – pensou – mas não pôde dar vazão

Aos seus malévolos intentos – de repente

Um som perturbou seu pensar. De supetão

O doce riso de uma criança inocente

Cortou o ar, chamando-lhe a atenção –

Virou sua feia cabeça, e prontamente

Viu a amável Matja feliz a brincar,

Em frente a janela de seu humilde lar.

XIX

Ora, desde que seu palácio sulfuroso

Ergueu-se do nada nas frias profundezas

Da Terra, Satã, amargo, invejoso

Por não ser mais partícipe das belezas

Que Deus fez, entre mordaz e pesaroso

Vem entre nós semear suas tristezas,

Pois a si jurou o apóstata infeliz:

‘Se não o sou, ninguém mais pode ser feliz!’

XX

E quando a pobre Matja ali contemplou,

Sentiu, como nunca antes houvera sentido,

A falta de tudo aquilo que abandonou

Desde que, relegado a um anjo caído,

Contra as hostes celestiais se rebelou.

Perfurou-lhe o remorso – mas, empedernido,

Retornou à sua forma usual,

Dirigindo à menina um ódio bestial.

XXI

‘É bom que aproveites por ora, menininha –

Brinque enquanto podes tu! Mas voltarei

Para buscar-te ainda hoje, à noitinha;

Sorrateiro como um vampiro virei

E teu pesar será a felicidade minha!

Do seio de quem a ama a roubarei!’

E com um malicioso riso triunfante,

Sumiu a pensar num plano horripilante.

XXII

Dito e feito: o Sol no horizonte baixara,

E por toda a alegre vila industriosa

O labor de mais um dia se encerrara.

A noite veio então – friorenta, ventosa –

E alma não havia que não se embrulhara

Num quente cobertor em uma gostosa

Cama, descansando merecidamente

Até que despontasse a manhã novamente.

XXIII

O Mal não dorme, seja noite ou seja dia,

No entanto – cumprindo o que prometera,

Exultante em malévola alegria,

Na vila Satanás reaparecera:

Grácil e agilmente voando ia

Pois, sob um novo disfarce, agora era

Uma ave colorida e encantadora,

Com linda plumagem e voz sedutora.

XXIV

Não demorou muito até que avistasse

Uma vez mais a casa onde Matja morava

E no parapeito da janela pousasse,

Contemplando-a – em sua cama repousava,

Sorriso nos lábios como se sonhasse

Com uma coisa que muito lhe agradava.

Quase desistiu Satã, arrependido,

Mas o mal, mais alto, falou-lhe ao ouvido;

XXV

Com seu bico pontiagudo e alongado,

Bateu na janela ritmadamente

Enquanto dizia: ‘Aqui fora está gelado!

Dai-me abrigo num lugar que seja quente!’

Dentro em breve atingiu um bom resultado –

A garotinha despertara lentamente

E, fascinada pela ave peculiar,

Abriu a janela, deixando-a entrar.

XXVI

Num paroxismo de infantil curiosidade,

Suas coloridas penas admirando,

Perguntou-lhe: ‘Lindo pássaro! É verdade

Que existes, ou estou ainda sonhando?

De que terras vens, onde, em liberdade,

Podes entreter-se, tal qual nós, falando?’

E o diabo, como um excelente mentiroso,

Respondeu servil e obsequioso:

XXVII

‘Agradeço-lhe por tua cortesia,

Gentil garotinha – dum reino formoso

Vim, onde todo ano, mês, semana, dia

Nunca neva como aqui. Esplendoroso

O Sol fulgura, irradiando alegria,

E seu monarca, um homem gentil e bondoso,

Tem um séquito de lindos animais –

Mas é de crianças que ele gosta mais.

XXVIII

Por isto manda ele a mim a procurar

Mundo afora por crianças obedientes

Em cujos domínios quer recepcionar –

Haverás de ganhar fantásticos presentes,

Passando um dia inteiro a brincar.

Tão logo saudades de tua casa sentes

Num passe de mágica aqui voltarás;

Na ida e na volta, ninguém a notarás.

XXIX

Que dizes tu? Meu senhor queres conhecer?’

A pobre Matja, que nunca antes escutara

Uma mentira, e tão jovem para saber

Que o rei do mal tão somente a enganara,

Em sua inocência só pôde responder:

‘Sim, linda ave!’ …E internamente exultara

O demônio ante seu plano depravado,

Que prosseguia conforme o esperado.

XXX

‘Pois siga-me então, menininha adorada,

E não deixemos mais meu senhor esperando;

Pela frente há uma longa caminhada.

Não te afastes de mim! Quem vai te guiando

Serei eu nesta prazerosa jornada.’

E a garota, naquela história se fiando,

Sorrateiramente a janela saltou

E com Satã na fria noite se embrenhou.

XXXI

Vendo do pássaro o rastro colorido

À sua frente, no céu, Matja caminhava –

O diabo, de coração enrijecido,

A norte, e mais a norte, matreiro voava.

Com seu próprio negro plano entretido,

À coitadinha rumo a um triste fim levava;

Esta, ignorante do perigo iminente,

Ia tagarelando animadamente.

XXXII

Uma tempestade de neve repentina

Dentro em breve sobre a dupla se abateu;

Se aproveitando da distração da menina,

Rindo, em pleno ar, Satã desapareceu.

De Matja a diminuta figura franzina

Num alvo, frio cobertor desfaleceu –

Pela ave, pelos pais, por qualquer um gritava,

Mas ninguém havia que a escutava.

XXXIII

Só o que via era uma branca vastidão

Que lhe perfurava a pele e o olhar;

O frio gelara-lhe o sangue e o coração

Que, em questão de minutos, veio a cessar

Seus batimentos. Lá, estirada no chão,

Antes de morrer só conseguia pensar

Naquele reino ilusório, caloroso,

Que lhe prometera o arqui-mentiroso.

XXXIV

Quando um novo dia trouxe a alvorada,

A turbamulta de aldeões consternados

Encontrou a garotinha congelada

Até a morte. Seus corações enlutados,

Fizeram com que ali fosse sepultada,

Seus restos mortais estando demarcados

Por uma cruz de madeira unicamente,

Feita de modo simples – mas habilmente.

XXXV

Existe, porém, nos Céus, um Deus carinhoso

(Ou, pelo menos, tal o quero acreditar)

Que, após receber em Seu seio, atencioso,

A alma da pequena Matja em Seu lar,

Levou-a a um lindo bosque, ameno e frondoso,

Onde passaria seus dias a brincar

Em juventude eterna e em sossego infindo,

Entre os anjos a encantar-se, sorrindo –

XXXVI

E daquela humilde cruz Deus erigiu

A mesma imensa montanha monumental

Que desde então a meus conterrâneos serviu

Como mausoléu – e como um memorial

De uma bela lição que tão bem proferiu

O Filho amado do Senhor celestial:

‘O reino de meu Pai herdará tão somente

Quem portar-se qual criança inocente.’

XXXVII

Minha história concluo com um adendo:

Houve quem, com coragem suficiente

Para escalar o Gravhaug, acabou vendo

Além da ornada cruz um vulto transparente

Que vai, com a luz solar, se desfazendo

E se recompondo – juram ardentemente

Ser o espírito da curiosa Matja

A visitar-nos… Quanto a você – o que acha?”

(São Carlos, 31 de março de 2023)

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 19/02/2016
Reeditado em 04/04/2023
Código do texto: T5548320
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