BULICHO II & MAIS

BULICHO II

O bulicheiro fazia

as conta em papel de embrulho:

para tudo lhe servia,

até mesmo sarrabulho!...

Quando o mascate trazia

mercadoria de entulho,

ele as contas conferia,

para não ficar no esbulho!...

Se o mascate punha antolhos:

"Oigale tchê, tu é uma peste!"

reclamando feito um potro,

apontava para os olhos:

"É porque este é irmão deste

e primo daquele outro!..."

BULICHO III

O bulicheiro e o mascate eram amigos

de longa data... Pelas carreteiras

andava um, portando garrucheiras,

passando privações e mil perigos;

o outro se quedava nos antigos

direitos dessas vendas estancieiras,

erguidas desde sempre pelas beiras

das estradas vicinais, nesses ambigos

lugares que ainda eram duas estâncias,

que também a uma e outra pertenciam,

que junto às lindes sempre havia passagens;

lá se reuniam para as manigâncias

os peões e os milicos que ainda havia

pelas fronteiras, em longas fabulagens...

BULICHO IV

No seguimento do beiral da estrada

armava o bulicheiro cancha de osso

(cancha de bocha pro pessoal mais moço,

que aprendera dos gringos a jogada).

Se o fazendeiro era meio camarada,

deixava ainda fazerem mais um troço:

alevantavam o arame, abriam poço,

montavam cancha reta e a cavalhada

juntavam nos domingos pras carreira;

vinha gente de longe, bem pilchada,

de aranha e de charrete. Para a aguada

iam cavalo e burro... Pela esteira

vinham os cuscos e, numa cambulhada,

chinas vestidas pra ocasião festeira...

BULICHO V

Era em feriado que corria a canha,

mas os sitiantes preferiam fazer feiras

em cada sábado. Traziam as chaleiras

que a mulher do bulicheiro, sem ter manha

aquecia no fogão. Compravam banha,

charque e farelo, farinha e umas porqueiras:

Pindorama pro cabelo das chineiras,

Amor Gaúcho, que rapaz apanha...

E maior percisão, agulha e linha,

ferramentas, fazenda, até bombacha:

os aba-largas pro calor do sol.

O que quisessem no bulicho tinha,

espora, poncho, guaiaca, bota, faixa,

cal e cimento, tinta e até urinol!...

BULICHO VI

E o que teria sido do Rio Grande,

sem esses bulicheiros dessombrados,

em seu viver consoante Deus o mande,

por estes vastos pampas descampados...?

Por onde a tosca aflora, se cavados

por mais de meio metro, no desbande

dos rebanhos, nesses tempos invernados,

nas canhadas vazias dessa lande...

Essa gente tão simples e constante,

que dava provisões aos maragatos,

provisionava também os pica-paus,

buscando a paz que seu comércio adiante,

mas sem que pobres andassem sem sapatos,

nem lhes falhasse a bóia em dias maus!...

BULICHO VII

Pois era assim, na vastidão do pago,

esse entreposto de provimentação,

na venda da espingarda até o colchão,

pra cuidar do vizinho em cada estrago.

O bulicheiro não era nenhum mago,

mas não ficava rico em sua função:

bancava o duro, porém bom coração

demonstrava ao andejo em dia aziago.

Hoje rarearam os bulichos de campanha:

vem à cidade o peão, sempre que ganha,

do bulicheiro até esqueceu o nome,

que suas compras anotava em caderneta

mas a missão cumpria mais secreta

de não deixar o povo passar fome!...

PARADOXO DE UM TOLO I

Se eu afirmar ser sempre mentiroso,

saberás bem que estou mentindo agora;

porém, se estou mentindo nesta hora,

então te minto ser sempre mentiroso...

Mas se mentir ser sempre mentiroso,

então talvez verdade fale agora;

e se falo a verdade nesta hora,

bem saberás que não sou um mentiroso.

Mas se te minto faltar sempre à verdade,

escondo que à verdade não te falto;

e, se não falto à verdade, estou mentindo;

E se te afirmo falar sempre inverdade,

sou verdadeiro na mentira em que te assalto

ou só estarei mentiras transmitindo...?

PARADOXO DE UM TOLO II

Se eu te disser então que nunca minto,

saberás que o que falo é uma inverdade,

tão natural que é a humana falsidade,

que nem sequer a mim conto o que sinto.

Desse modo, se te afirmo o quanto sinto,

seja de amor, de ódio ou de vaidade,

duvidarás de tal sinceridade,

por ser mentira afirmar que nunca minto.

Eu te direi, então, que eventualmente

te mentirei, quando me for necessário

e um bom motivo a tal me impulsionar.

Mas não serei da mentira perdulário:

ser verdadeiro é bem mais conveniente,

pois se mentir, irás me acreditar...

PARADOXO DE UM TOLO III

Se eu te disser, porém, que sempre brinco,

o meu brincar não será levado a sério,

por mais que até pareça despautério

tal mentira em que ponha mais afinco...

E da verdade, eu perderei o vinco,

pois pensarás, de modo deletério,

que só estou a brincar e um cemitério

de boas intenções no solo eu finco...

Somente porque quis, em meu brincar,

esconder a seriedade de meu sonho,

sem te negar a liberdade de descrer...

É assim que fico, nesse deslizar,

sem me atrever a meu amor bisonho

como mais sério que a vida descrever...

PARADOXO DE UM TOLO IV

Se precisas mentir, conta uma parte

apenas da verdade e não inventes

histórias longas, recriar não tentes

o que nunca aconteceu, porque destarte,

ao inventares desculpa que descarte

o que de fato houve, é provocar

mais uma série de mentiras e buscar

melhor história que à descrença farte...

Mentir é trabalhoso. Bem melhor

é contar a verdade, sempre (ou quase),

porque mentiras tendem a dar cria...

Mas esquecendo uma parte, o narrador

para explicar-se encontra maior base,

por não lembrar-se de tudo o que fazia...

PARADOXO DE UM TOLO V

Existem muitos tipos de mentira;

há, por exemplo, a mentira caridosa:

"não tem espinhos", se afirma de uma rosa,

se em desabono desta algo surgira.

"Deu negativo", ao julgar que menos fira

o coração de alguém do que a valiosa

informação de que é câncer a outra rosa

que de seu ventre a se nutrir se insira.

Esconder uma morte ou uma doença,

seria um jeito de poupar o sofrimento

dessa pessoa com quem conversamos.

Mas, de fato, quem se poupa nessa crença

somos nós mesmos, em egoísta pensamento

de não vermos sofrer a quem amamos.

PARADOXO DE UM TOLO VI

Existe aquele que sempre se engrandece:

fala de si muito mais do que merece,

para mostrar aos outros que é melhor

do que parece ser -- e o é, de fato...

Assim, do que não mente, até parece

que coisa parecida lhe acontece:

ser mentiroso lhe daria mais favor

que ser o alvo de descrédito e boato...

E o que fazer, se nem nós acreditamos

já ter feito muito mais que a maioria

fez toda a vida, no prazo só de um ano?

Talvez seja melhor quando aumentamos

o que fizemos, como fazem; e a valia

do desconto não nos cause grande dano!...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 15/10/2011
Código do texto: T3278102
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