ARAGANO III & MAIS

ARAGANO III

Na corrida em cancha reta, o aragano montava

e ganhava cada aposta de vinte contos de réis:

dava pra pagar três chinas, enchia bem seus farnéis

e saía pela estrada, onde outro páreo buscava...

Era saudado ao chegar, alguém logo o contratava

para montar outro pingo, tinha na mão três anéis,

de ouro, igual a seus dentes, resultado dos lauréis

que tinha em cada corrida que o aragano ganhava.

Mas o tempo foi passando e hoje o compositor,

quando prepara uma penca, que se tornou coisa rara,

porque agora existe turfe, porque agora existe prado,

não mais convida o aragano para ser seu montador;

prefere um jóquei magrinho, guri sem barba na cara:

acabou-se o aragano, nem apostam no coitado!

ARAGANO IV

No tempo antigo, o aragano era o melhor domador:

vestindo bombacha velha, o potro chucro laçava,

ele mesmo circulava e pouco a pouco cansava,

e depois montava em pêlo, um modesto vencedor.

Ou vinha na marcação, maneava de tirador,

tirava o ferro da brasa e bem rápido aplicava

e mal o bicho mugia, com mão de bosta tapava

e quando capava um touro quase nem fazia dor.

Mas hoje, doma é de circo, vestem roupa americana,

que nem caubói de cinema, são artistas de rodeio,

tem até potro mecânico em lugar do verdadeiro.

Já se foi do meu Rio Grande a velha raça aragana,

quem não morreu tem lugar só na exposição de Esteio

esse andejo de automóvel que só finje ser vaqueiro.

ARAGANO V

Deste pampa demarcado por truque de alambrador.

dividido por sem-terras, essas tropas de assentados,

recortado em municípios cada vez mais apertados,

cada vez mais diferente, cada vez mais podador,

já se foi todo aragano, já se foi o esquilador,

os antigos matadouros já foram desmantelados,

lá se foram as charqueadas, até mesmo sucateados

ficaram os frigoríficos, no afã modernizador.

Já sumiu cancha de osso, não temos mais pajador,

o pago virou cidade, o chão da estrada é asfalto,

os autos passam roncando, as preás atropelando,

nem os lanceiros do pampa, no pó entreverador,

existem de carne e osso, seus fantasmas gritam alto

nas copas dos eucaliptos que por aí vão plantando!

ARAGANO VI

Vamos falar com franqueza: era vida muito braba

aquela dos araganos ou das estâncias os peões:

mas eram gente mais dura e das tripas corações

faziam nas invernadas, enquanto os índios na taba

se encolhiam nos seus ponchos. Essa vida só se gaba

porque não se vive mais. Hoje são quentes verões,

invernos muito mais mansos, não há mais revoluções,

como nos tempos dantanho. Que fazer, tudo se acaba!

Pois hoje o povo se lembra de cultivar tradições,

pilchas formosas, as danças e mil bonitas canções

e a memória farroupilha por todo lado se vê;

Mas os gaiteiros de hoje já não cantam nos galpões:

se apresentam pelos palcos, aparecem na tevê

e os araganos de agora são patrões de Cetegê!...

CASCAVÉIS

Ganhei o que pedi -- largos trabalhos,

melhor remunerados do que antes,

a fim de amealhar em bons instantes,

certa reserva para instantes falhos.

Talvez me caibam finalmente os talhos

com mais sabor da vida, pois constantes

me foram maus momentos delirantes,

como os golpes ferozes desses malhos

que feriram o gongo de minha vida,

fazendo ressumbrar em tantas obras

a beleza que roubei à adversidade;

a linfa faz-se ouro na ferida,

pus em poesia antídoto de cobras,

a proteger-me das presas da maldade.

SEM-QUERENÇA

É o odor dos dias frios

que busco na luz da noite:

como é doce o seu açoite

no estalar do sangue em rios.

O calor transforma em fios,

das artérias a torrente:

amolece nessa quente

morte seca dos estios.

É assim que busco a lua,

espiando entre seu manto:

a noite é criança cega.

Mas sua vista brilha nua

e percebe o menor canto

na emoção da minha entrega.

ANDEJO I

Tropeiro velho vive de minuano,

que lhe entra direto no pulmão,

lhe faz bater mais forte o coração,

fogoso fica que nem potro cigano.

Dizem que o vento passa,ano após ano,

e nunca volta para seu rincão,

que o uivo é choro de uma solidão,

escondida no poncho do aragano.

Mas não é bem assim: ele atravessa

a palha dos ranchinhos e se aninha

nas ventas do tordilho e no potreiro.

E o peão velho, numa erva espessa,

do pago inteiro na cuia se avizinha,

nesse vento que é o sonho do tropeiro.

ANDEJO II

Tropeiro velho se perdeu do cusco

que as feridas lhe lambia antigamente;

sua vida demudou, tão diferente,

que nem mateia mais ao lusco-fusco...

O capataz lhe fala em tom mais brusco

e o poncho é um furo só nesse valente

vento mais velho que o andejo é gente,

fazendo troça do pobre do velhusco.

E chega o dia em que no seu galpão

não querem mais já que pouco trabalha:

lhe dão uns pila, fingindo uma bondade,

que não paga sequer o chimarrão.

Na longa trilha não há deus que o valha:

vai passar fome em toca ou na cidade.

ANDEJO III

Tropeiro velho que perdeu querência,

vai se enfiar em ranchito de torrão:

amassa o barro com sua própria mão

e deixa ao sol, cozendo, com paciência.

É até menos pior, pois, no verão,

essa casinha é fresca; o santa-fé

protege bem da chuva; e o vento até

não lhe esfria no inverno o coração.

Enfim, do pampa retira seu sustento:

em qualquer sanga pode encher a bilha,

um pouco caça, pesca outro poquito...

Mas se precisa mesmo de alimento,

descasca com cuidado a corunilha,

o pobre andejo: e vai vender palito!...

ANDEJO IV

Tropeiro velho que nem tem mais pingo,

dorme em pelego ao canto do galpão:

Se campereia, o cavalo é do patrão;

e mal e mal, nesta canção, eu vingo

toda a injustiça na vida do peão:

em cada verso seu suor respingo,

seu sofrimento nem um pouco extingo,

pois nem traz raiva no seu coração...

Depois de tudo, ele acha natural,

pois nunca teve apero ou nazarena,

era o estancieiro que bebia a nata

do leite que apojava em seu curral...

Não tem mais bota, que dirá chilena,

o andejo velho troteia de alpargata!...

ANDEJO V

Tropeiro velho que deixou da china,

que não quiseram ver mais no galpão,

foi pra cidade, vive num porão:

nem mora mais, se entoca nessa mina!

Água de bica, banho numa tina,

aquece um carreteiro com feijão,

que mal tem carne, de sal tem precisão,

dorme enroscado no enxergão de crina.

Hoje está magro, pobre, desdentado,

de seu braço fininho, engruvinhado,

a força inteira de seu muque foi-se...

Se hoje come churrasco, é de limozna,

em vez de mate, toma chá de losna,

bem mais amargo que o amargo é doce.

ANDEJO VI

Tropeiro velho que deixou da china,

dorme em pelego ao canto do galpão;

tem por consolo a farfalhante crina

e o amargo verde de seu chimarrão...

Quando recorda os peitos da menina,

só toca as curvas do seu violão;

e nas quebradas passa a triste sina:

calor de geada é o poncho do peão!...

Só tem querência quando encontra a morte,

na cova rasa que uma cruz nem marca;

mas, se o fértil esterco a chuva encharca,

cintila sobre o pago um riso forte,

do taura que triunfa sobre a sorte:

seu coração se expande: e é patriarca!

William Lagos
Enviado por William Lagos em 25/09/2011
Código do texto: T3240991
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