TIRADENTES & MAIS

TIRADENTES & MAIS

Novas séries de William Guedes, 3-12/3/16

HERÓIS NO INVERNO IX – TIRADENTES – 3 MAR 16

Aqui me encontro, nesta melancolia,

Por entre grades a contemplar o mundo;

Meus companheiros já seguiram a sua via,

Fiquei sozinho no ergástulo profundo;

Cláudio Manoel morreu e se dizia

Que foi assassinado, mas imundo

Boato afirma que a própria vida tiraria...

E a sepultura sagrada assim negou

A Igreja, que além dos muros o enterrou!

Thomaz Gonzaga está em Moçambique,

Com alguns outros também lá exilados;

José Rolim em Portugal está – e por lá fique,

Que embora padre, era rico de pecados;

Muito embora a evidência assim indique

Que o chefe fosse de nós, os rebelados;

Mas toda a culpa eu assumo plenamente,

Pois sem dúvida, eu fui Inconfidente!...

Tive uma vida nobre como alferes

E fui dentista, brandindo o boticão;

Considera meu trabalho qual quiseres,

Que o pratiquei até mesmo na prisão;

Joaquim Silvério foi traidor, mas não esperes

Que eu me rebele e faça igual traição:

Passo por chefe e já fui condenado

A ser em breve no patíbulo enforcado!...

Pouco me importa, seria bem pior

Se condenado fora a esquartejamento,

Como Felipe dos Santos, meu mentor:

Será bem rápido o meu padecimento,

Que enfrentarei com calma e com valor;

Por meu país eu sofrerei esse momento,

Pois jamais, segundo creio, um povo vil

Há de habitar a extensão de meu Brasil!...

HERÓIS NO INVERNO X – D. PEDRO II – 04 MAR 16

Aqui me encontro exilado nesta França,

Após tudo quanto fiz pelo Brasil,

No coração extinta já a esperança

De tornar a rever seu céu de anil;

Por muitas lutas o conduzi à bonança,

Contra inimigos do pendor mais vil

E de repente, sem qualquer aviso,

Expulso eu fui e seu solo não mais piso!

Em meu governo desse vasto Império

Eu o levei à maior prosperidade,

Da corrupção evitei o despautério,

Sempre meu povo a dominar com equidade,

A seus anseios trazendo refrigério,

Desde o momento em que a maioridade

Foi decretada, pondo fim às convulsões

Que o chão rasgavam com revoluções!

Nunca um país tão rápido progresso

Alcançou igual que minha nação;

Quando parti, logo entrou em retrocesso;

Eu permiti da escravatura a abolição:

Mais devagar eu a queria, confesso,

Mas Isabel tinha um nobre coração

E os fazendeiros, sentindo-se espoliados

Se revoltaram e assim fomos exilados!

Contudo, fiz encher um travesseiro

Com um punhado da abençoada terra

Que me chegou a bordo de um veleiro,

Junto a notícias de que o país está em guerra...

Mas nele posso adormecer ligeiro,

Pois sei minha vida muito em breve encerra...

E ainda espero, com certeza peremptória,

“A justiça de Deus, na voz da história!...”

O SONETO DO IMPERADOR

DOM PEDRO SEGUNDO

Espavorida, agita-se a criança:

De fantasmas noturnos tem receio.

Mas se abrigo lhe dá materno seio,

Fecha os olhos doridos e descansa...

Perdida é para mim toda a esperança

De volver ao Brasil. De lá me veio

Um pugilo de terra e nesta creio,

Brando será meu sono e sem tardança...

Qual infante a dormir em peito amigo,

Tristes sombras varrendo da memória,

Ó pátria minha, sonharei contigo!...

E entre visões de paz, de luz, de glória,

Sereno aguardarei no meu jazigo,

A justiça de Deus, na voz da história!...

BATOLOGIA I – 05 MAR 16 (*)

(*) Repetição, gaguez.

Chamamos “dar exemplo” a este dever

que temos, para com nossa sociedade

agir corretamente e sem maldade,

qual um modelo de correto proceder.

Pois te observam, sem teu perceber!

E existe quem te imite, na verdade,

nisso não vês a racionalidade,

porém copiam quanto te veem fazer.

Talvez a forma incorreta de tua vida,

por mais que sejas apontado como errado:

sempre haverá quem queira te copiar.

Melhor então, antes de tua despedida

deixar um bom exemplo, que imitado,

de algum modo possa ao mundo melhorar...

BATOLOGIA II

À unidade de imitação chama-se mima,

tal como do significado existe a sema

ou para o som destina-se o fonema

(mas que eu saiba não há unidade para a rima).

Na macaquice do inglês, que hoje domina,

falam em meme, mal copiado como tema,

que em inglês se diz “mime”, mas é lema,

ignorando-se o que nosso idioma ensina...

Copiaram mal os termos desse inglês...

Não que contrário eu seja a essa linguagem,

mas com Bilac, eu prefiro a “inculta e bela”:

nossa língua portuguesa... E sem dobrez,

pretendo defendê-la com coragem,

enquanto o coração em mim não gela...

BATOLOGIA III

Contudo, encontro aqui repetição

dos conselhos que vêm de antepassados,

na maioria a dever ser conservados,

embora algum já caduque em ocasião...

Com insistência repetir certa noção

é uma forma de gaguez, tristes pecados,

os preconceitos ali firme revelados,

já por séculos mantidos sem razão.

Mas “dar exemplo” não é coisa batológica;

bem ao contrário, remar contra a corrente

é um bem dificultoso empreendimento,

ao contrariarmos tanta fala demagógica

da autoridade sobre nós presente,

seu cargo a defender com grande intento!

BATOLOGIA IV

Para ninguém pretendo ser modelo:

ser autêntico sempre foi o meu normal;

se me respeitam e me tomam por sinal,

veem em tal procedimento algo de belo.

Contra o medíocre, contudo, me encastelo,

por mais que a corrupção se torne atual

e o pornográfico como coisa natural,

para tais práticas me recuso a dar um selo.

Eu sou eu mesmo e sempre fui assim;

se alguém me segue, não é por culpa minha

que algum exemplo meu assim espelha;

mas seguirei a apresentar meu outrossim,

mesmo apoiando aquilo que espezinha

a sociedade, em seu balir de ovelha!...

OLHOS DE ACENDALHA I – 6 mar 16 (*)

(*) Combustível, gravetos, brasas.

Eu já me acostumei. Por toda a vida

soube de coisas que mais ninguém achava;

o que eu dizia, todo mundo discordava

e a opinião pública me levava de vencida...

Eu era o louco, o bobo, era a guarida

da troça alheia, até que se provava

que a razão era minha e vindicava

minhas velhas opiniões de tanta lida...

Mas quem disse que era então reconhecido?

Muito ao contrário, os outros “esqueciam”

a troça e a injúria e não reconheciam

que sem motivo me haviam perseguido.

E eu pasmava, ao ver como fingiam

que sempre apoio me haviam concedido...

OLHOS DE ACENDALHA II

Ainda hoje, em minha própria casa,

sou contrariado quase diariamente

e quando os fatos demonstram, finalmente

que a minha opinião ao certo embasa,

a mim encaram, na expressão mais rasa;

se reafirmo, me chamam “inconveniente”.

“Eu nunca disse isso”, a me afirmar frequente –

“Não foi assim que joguei naquela vasa!...”

Mas foi-se o tempo em que tal me atormentava:

o mundo encaro com longanimidade,

toda dobrez e falsidade em ironia...

E a quem me diz que comigo concordava

ou se recorda inversamente da verdade,

a minha memória só permite que sorria!...

OLHOS DE ACENDALHA III

Mas do fundo de meus olhos salta o brilho,

numa mescla de perdão e zombaria,

ao ver que alguém falseava o que dizia

e assim tentava me afastar do trilho...

Porém lembranças prendi sempre com atilho,

arame firme que a ferrugem não feria,

a lamentar, talvez, o que faria

no seu pensar a verdade pôr no exílio...

E afinal, qual é a importância disso?

Todos precisam a si mesmo respeitar

e a lembrança é mesmo coisa tão fugaz!

Meu fogo-fátuo já nem sequer atiço,

se agora podem igual a mim pensar

quem comigo hoje concorda, mal não faz!

ISIS i – 7 MARÇO 2016

LEMBRANÇAS TRAGO DE ISIS, DEUSA ANTIGA

QUE SE TORNOU POPULAR ENTRE OS ROMANOS

NAQUELA ÉPOCA DO MUNDO SOBERANOS,

A QUEM CERCEAVA SOMENTE O PARTA AURIGA

ASCENDENTE DOS PRESENTES IRANIANOS

EM CUJA TERRA ACREDITO NÃO PROSSIGA

NINGUÉM O CULTO DA ISIS QUE BENDIGA

SOMENTE O EGITO EM SEUS RITUAIS ARCANOS.

ALGUNS INDICAM SEREM RITOS NOBRES

DIFÍCIL DE ENTENDER SUA INTENSIDADE

ENVOLTOS EM MAGIA E MISTICISMO;

OUTROS DESCREVEM CERIMÔNIAS BEM MAIS POBRES

SEM UM RESQUÍCIO DE ESPIRITUALIDADE

NUM ORGIÁSTICO ESPLENDOR DE SENSUALISMO!

ISIS II

POIS ERAM QUATRO IRMÃOS: A BELA ISIS

DE OSIRIS A ESPOSA SACROSSANTA

SETHI A SERPENTE QUE NA PLAGA SE ALEVANTA

E SUA ESPOSA A QUEM CHAMAVAM NEPHTHYS

ANTES QUE HOUVESSEM AS HUMANAS CRISES

AOS DOIS CASAIS O MUNDO INTEIRO IMANTA

É O GRANDE NILO QUE SEU LOUVOR MAIS CANTA

CRUZANDO A AREIA QUE SOB OS PÉS ALISES.

PORÉM SETHI MOVIDO DE AMBIÇÃO

OU TALVEZ IMPULSIONADO POR INVEJA

FOI O PRIMEIRO A MATAR O PRÓPRIO IRMÃO

E NA REVOLTA POSTERIOR QUE ENSEJA

A PRÓPRIA NEPHTHYS NEGOU-LHE SEU PERDÃO

NA COMPAIXÃO COM QUE A IRMÃ ISIS BEIJA!

ISIS III

SETHI TEMIA QUE OSIRIS RETORNASSE

E O ESQUARTEJOU EM MÚLTIPLOS PEDAÇOS

POR TODO O NILO A PROCURAR-LHE OS TRAÇOS

AS IRMÃS QUE HÓRUS TALVEZ ACOMPANHASSE

EMBORA AFIRMEM QUE ESSE FILHO SÓ NASCESSE

TEMPOS DEPOIS DE ISIS NOS ABRAÇOS

SERES HUMANOS ACALMANDO DOS CANSAÇOS

O POVO ANTIGO QUE MAIS TARDE ALI SE ACHASSE.

COM MUITO ESFORÇO O CADÁVER COSTURARAM

SÓ UM PEDAÇO LHES FALTOU ACHAR

QUE CERTO PEIXE ATREVIDO DEVORARA

DE LONGE OS RISOS DE SETHI LHES SOARAM

SENDO SEUS ÓRGÃOS SEXUAIS A LHE FALTAR

NO INFERIOR MUNDO OSIRIS RETORNARA!

ISIS IV

TORNOU-SE ENTÃO O JULGADOR DOS MORTOS

ENQUANTO ISIS ERA A SANTA MÃE DA VIDA

A FÉRTIL TERRA POR ELA PROTEGIDA

LEVANDO NAVES DE PAPIRO ATÉ OS PORTOS

AS MÃES HUMANAS PROTEGENDO DOS ABORTOS

CRESCENDO O TRIGO SOB SUA MÃO QUERIDA

DOS ANIMAIS CADA FÊMEA PROTEGIDA

RETIFICANDO DOS HOMENS ATOS TORTOS.

QUANDO CLEÓPATRA VEIO A ROMA DESDE O EGITO

DE ISIS A DEVOÇÃO TROUXE CONSIGO

QUE SE TORNOU POPULAR ENTRE AS MULHERES

SEUS VELHOS DEUSES OLVIDANDO NESSE AGITO

SENSUALIDADE OU MISTICISMO A DAR ABRIGO

PONDO DE LADO A PRESTIMOSA DEUSA CERES!

ISIS v

DEUSA ROMANA DE FATO ERA DEMETER

COM A HELENA CERES LOGO ASSIMILADA

À FERTILIDADE CADA QUAL RELACIONADA

TAL QUAL A VELHA BONA DEA MATER.

BEM MAIS ANTIGA E DE IDÊNTICO CARÁTER

QUE ENTRE CAMPÔNIOS SEGUIU SENDO ADORADA

E PELA IGREJA AFINAL SINCRETIZADA

QUAL SANTA MÃO DO CRISTO PANTOCRÁTOR. (*)

(*) SENHOR DE TUDO, SENHOR DEUS DO UNIVERSO.

A ESSA ALTURA JÁ HAVIA O MITRAÍSMO

E MAIS OS CULTOS PROIBIDOS DA GNOSE

VINDOS DA ÁSIA TRAZENDO O DUALISMO,

PARA AS MULHERES COM MÍNIMA ATRAÇÃO

E O JUDAÍSMO QUE GRANDE VOGA GOZE,

PERDIDA A CRENÇA NO ANTIGO PANTEÃO!

ISIS VI

ASSIM DE ISIS BEM RAPIDAMENTE

EXPANDIU-SE SEU CULTO MILAGROSO

MISTÉRIOS LÚGUBRES DE CUNHO TENEBROSO

PRODÍGIOS VIVE QUEM O TEMPLO SEU FREQUENTE

BULWER-LYTTON RELATOU-NOS IGUALMENTE (*)

NOS “ULTIMOS DIAS DE POMPEIA” SEU FAMOSO

ROMANCE A DESCREVER O PAVOROSO

VULCÃO VESÚVIO EM ERUPÇÃO POTENTE.

(*) Sir Edward George bulwer, barão de luytton, 1803-73.

NO QUAL DOS OLHOS DE ISIS LUZ BROTOU

QUENTE E INCISIVA NOS FIEIS SE PROJETOU

FORTALECENDO-LHES A CREDIBILIDADE

RIVAL TERRIVEL DO NASCENTE CRISTIANISMO

IMAGEM VIVA NO POPULAR MODISMO

QUE ATÉ O PRESENTE RECORDA A HUMANIDADE!

FLOR DESPETALADA I – 8 MAR 16

As flores brotam nos canteiros do jardim,

ali reunidas em grande profusão,

de toda ordem natural em alteração,

desafiando clima, erva e capim!...

Existem outras a recobrir assim

os verdes campos durante a floração,

espécie única, clonada em multidão,

jorram perfume qual um toque de clarim!

Nossas narinas atinge, agreste odor,

cinestesia nos ouvidos despertando,

cada flor tendo a própria melodia;

segundo a física quântica, em seu valor,

por suas raízes talvez até comunicando

cada uma delas o quanto mais temia!

FLOR DESPETADA II

Com os poetas quem sabe até falassem

e de algum modo as pudessem escutar;

presidem ninfas seu manso rebrotar,

talvez com elas se comunicassem!...

Quiçá de noite o seu olor buscassem,

entre as aleias, vendo flores a fechar;

somente o Sol as consegue despertar...

Alguns mesmos talvez as desposassem!...

Nunca encontrei essas sílfides pequenas,

que foram flores, abandonando os talos,

pairando gráceis sobre toda a brotação,

ou quiçá disfarçadas de falenas,

despetaladas as flores em gargalos

ou arrefecidas, já cumprida a sua missão...

FLOR DESPETALADA III

Mas se uma flor sem culpa for cortada

e colocada a agonizar em vaso,

é incontestável que não será o caso

de ser numa fadinha transformada!...

Cortam-se as flores por vaidade despeitada:

depressa ao belo humano chega o ocaso;

mesmo que as flores recebam menor prazo,

pode uma sílfide de cada uma ser formada!...

Vai-se a beleza da flor para o adejar,

transmogrifada, quiçá, em borboleta,

mas o que ocorre com a beleza da mulher?

Talvez por isso tantas queiram preservar

a sua nudez nas melodias secretas

de um quadro a óleo em perpétuo bem-me-quer!

FLOR DESPETALADA IV

Falei um dia que talvez as borboletas,

prevendo o fim de sua breve vida.

de alguma planta a permissão fosse pedida,

tornando em pétalas a cor de suas aletas!...

Mas hoje penso em feições menos secretas:

que a beleza da flor emurchecida

nessas fadinhas se transforme, engrandecida,

preservando suas ternuras mais diletas!...

Pois talvez disso suspeitem as mulheres,

querendo vê-las despetalar-se em vaso...

Mas eu contemplo essas flores do jardim

e penso então nos meus próprios misteres:

tantos sonetos escrevi... Não será o caso

que sejam flores que os murmurem para mim...?

EIRALUNA I – 9 mar 16

Neste templo de versos, um operário

apenas sou, pois dependo do arquiteto;

chinês eu fosse, primeiro punha o teto,

para depois erguer paredes do sacrário...

Costume estranho, porém não perdulário

do tempo, para todos tão dileto,

pois o trabalho é protegido por completo

por altos postes nos cantos do santuário...

Assim, se chove, a obra continua:

quando as paredes estiverem completadas,

retiram-se os pilares e o telhado

se deposita, com o auxílio de uma grua,

e estando partes do exterior inacabadas,

o material vai nesse espaço armazenado...

EIRALUNA II

Porém não sou chinês, naturalmente:

para o final da obra fica a eira;

sobre as paredes Luna brilha companheira,

pedra angular disposta finalmente;

Em Portugal, num mosteiro foi assente (*)

uma abóbada, com mil pedras beira a beira,

altos andaimes a sustentar certeira,

a garantir que não tombasse de repente...

(*) Segundo lembro, no Mosteiro da Batalha.

Houve temores de que desabasse

e o arquiteto colocou uma cadeira

diretamente no ponto mais central,

mandando então que a madeira se tirasse:

pedra angular a garantir toda a fileira...

Confiou na cúpula, sem sofrer o menor mal.

EIRALUNA III

O Arquiteto do Universo tem um plano:

sobre a Terra dispôs pedra angular:

pálida Luna, protegendo em seu pairar

dos meteoros ou de um cometa mais insano.

Todo o tecido do céu, imenso pano,

lateralmente contra Luna a se apoiar:

a humanidade bem tranquila a caminhar,

sem que o teto se despenque ou cause dano...

Sou operário, nem ao menos engenheiro,

as mil tarefas a receber diariamente,

pensando, às vezes, que tudo pode desabar...

E meu salário ao crepúsculo, ligeiro

recebo, a agradecer honestamente

por mais um dia que acabo de ganhar.

EIRALUNA IV

Hoje executo com buril e com cinzel

de meus versos diariamente uma parcela;

eles me sobem do íntimo em procela,

tal qual Canaan, a manar-me leite e mel...

Versos doces alguns, outros de fel,

alguns sonetos de harmonia plena e bela,

outros revoltos, que o coração congela,

pura acendalha, sem arco-íris ou ouropel...

Mas como posso com tais versos ajudar

na construção de um templo tão dileto?

Até parece que o possam corroer!...

Mas tudo escrevo, sem nunca protestar,

pois como os posso descartar, se o Arquiteto

é autor de plano que mal posso compreender?

VÁRZEAS VAZIAS I – 10 MAR 16

Enquanto jovem só se pensa no futuro,

nas mil promessas que se espera à frente,

de mil amores se tornando pretendente,

mil aventuras espreitando-nos do escuro...

Sinto saudades desse bem tão obscuro

que em mim esbarra direto ou apenas rente;

saudade apenas de um ser inconsequente

alegre ante o infinito, coração bem puro!

Na meia-idade, já a saudade é do presente,

de muitas coisas que se possa controlar,

mais cautelosos, perdida a gabolice!...

Mas quando o tempo sobre nós é assente,

diversas décadas do passado a relembrar,

resta a saudade tão mais frágil da velhice...

VÁRZEAS VAZIAS II

Há uma saudade bem mais do que passou

que do provável ou possível do presente;

algum temor do que o dia me apresente:

dores mais fortes das que o ontem me entregou...

Há uma saudade neste corpo que ficou

do corpo antigo de saúde mais potente,

não me lastimo, mas não sou indiferente,

pois dia a dia o tempo algo roubou!...

Não é saudade, de fato, do passado,

mas da esperança que já nutriu meu dia

do que faria e que agora já está feito...

O branco arroz da várzea já cortado,

a vida inteira que um só ano resumia,

neste dezembro a que encontro-me sujeito...

VÁRZEAS VAZIAS III

Metáfora que seja minha vida comparar

aos doze meses que perfaz um ano,

muita colheita severa e muito engano

e quantas mais poderei ainda ceifar?

Sinto saudades da obra a completar,

que venho realizando com afano;

não me limito a lamentar o dano

desses dias de cristal a estraçalhar.

A minha saudade é dos versos que se agitam

no interior da mente ou de meu peito,

e que talvez nunca consiga redigir...

Quando as várzeas dos dias se limitam,

restando a foice a reclamar o seu direito

de algum descanso, por já deixar de reluzir!...

PSICOPOMPO I – 05 SET 2007 (*)

(*) Condutor de almas, seguindo o gnosticismo.

Minha mãe surgiu em sonhos à minha filha

anos após sua morte, protestando

estar cansada de continuar cuidando

dos bisnetos a quem na Terra a trilha

não estava ainda aberta, pois seus netos,

a quem amava muito e que eram nove,

não aceitavam o anseio que comove

a gerar vidas no abraço dos afetos...

O sonho é de minha filha, ainda solteira,

que não confeccionou, para tais almas,

assim expectantes, organismos...

Sua avó, por isso, continua toda inteira

a cuidar de seu pequeno curral d'almas,

que nem transpõem da vida os paroxismos.

PSICOPOMPO II – 11 MAR 16

Segundo o Bramanismo, em outro plano,

almas esperam por reencarnação,

na expectativa de cumprir a sua missão,

em seu retorno periódico e cigano.

Desde o antigo Rig-Veda, o livro Indiano,

brota a doutrina da peregrinação:

qualidade a experimentar por ocasião,

até esgotar-se todo o atributo humano.

Então, cumprida a última gota da experiência,

cruzam do cosmos a fronteira altiva

e enriquecem destarte a divindade,

que as contemplou na maior condescendência

a permitir-lhes uma escolha rediviva

de outro apanágio qualquer da humanidade.

PSICOPOMPO III

Aqui na Terra com outras se encontraram,

seja em ódio, ou em amor cruas disputas,

muito mais longas as amorosas lutas

que atos de ódio, os quais depressa terminaram.

E nessas mil permutas que esgotaram,

assumem mútuas e místicas permutas:

O que eu te fiz, tu me farás, escutas...?

Ou tais ações fora do tempo se passaram.

Talvez difícil entender seja o conceito

dos intercâmbios em simultaneidade

ou de dever a si mesmo um compromisso,

mas quem ferimos ou amamos tem direito

de nos cobrar responsabilidade,

de algum modo mais arcano que castiço.

PSICOPOMPO IV

Será possível pensar que alma materna

contenha em si da descendência o germe,

alimentando e educando cada verme,

numa missão permanente e quase eterna?

Quiçá minha filha devassou essa caverna

que à sua ascendência e também minha concerne,

nesse sonho que à real forma se alterne,

visão fugaz a que atingiu por linha paterna.

Anos depois, finalmente engravidou,

mas qual espírito em seu útero agora habita?

Pertenceu a algum amigo ou antepassado?

E hoje minha mãe psicopompa se aliviou

de algum serzinho ansioso, que se agita

dentro do ventre em que está sendo gestado?

SONETO MEDÍOCRE I – 6 set 2007

Um dia eu chegarei, sem que ela espere (*)

ouvir de mim o som do sentimento

e lhe direi, em vão, meu pensamento,

que apenas os meus lábios refrigere.

(*) Alusão ao poeta nordestino Judas Isgorogota.

Talvez... ela me espere, em tal momento.

Que em seu olhar um brilho reverbere,

que, com carinho, sua mente me pondere

e me faça saber, meigo portento,

que o tempo todo ansiava por me ouvir,

sem esperar, mas não que não quisesse,

nem ressonasse o mesmo ideal fulgor.

Aguardando, tão somente, retribuir

carinho por carinho, em que me desse,

apenas num suspiro... igual amor.

SONETO MEDÍOCRE II – 12 MAR 16

Talvez, bem ao contrário, se recuse,

ou por já ter assumido um compromisso

ou por se achar totalmente alheia a isso

ou por temer que eu seja mau e a abuse

ou só querendo que intimorato eu cruze

qualquer limite que se impôs, castiço

ou por se acovardar perante o viço

de um sentimento que a si jamais aduze, (*)

(*) Adicione.

ou quiçá tempo demais tenha esperado,

o seu fluxo hormonal já ressecado,

maturidade a presidir seu julgamento;

ou quem sabe ainda se tenha acomodado

com sua branda condição de isolamento,

num ergástulo desnutrido de pecado...

SONETO MEDÍOCRE III

Quiçá se encontre em mim o desalento,

o temor da rejeição ou a indolência,

as circunstâncias exigindo-me paciência,

por timidez comprometido o julgamento;

talvez espere dela algum lamento,

quem sabe um só suspiro, alguma ardência,

que no fundo de seus olhos a imanência

me revele a esperança de um assento...

Enquanto isso, meus dedos se fascinam

com superfícies brancas de papel,

amor total e puro a descrever...

e enquanto só pelas palavras se definam,

meu tempo urge num galope de corcel

e só me reste lastimar quando morrer.

SONETO MEDÍOCRE IV

Porque, afinal, já de amor se disse tudo:

como evadir-me da mediocridade?

Amor, ciúme, rancor, ira, saudade,

tudo descrito em seu mais vasto conteúdo.

Que original eu possa ser já não me iludo:

até eu mesmo o descrevi em saciedade;

nada mais resta da luminosidade

que a um soneto afia e torna agudo!...

Um dia, eu chegarei... Mas que dizer,

se tudo quanto havia já encontrou?

Mal saberia definir o meu reclamo...

Será que alfim, ela só espera receber

o mais medíocre canto que escutou,

nessa frase tão batida do “eu te amo”?