Escravos (Épico da Escravidão)
I
Nau bravia corta as espumas,
Do mar tranqüilo e violento,
Visão obscura ante as brumas
Na ressaca divino tormento
Ao horizonte o céu coberto,
No murmurar da tempestade,
Terra nova! Longe ou perto
Sem uma precisa localidade!
Avante! Que a fúria natural
Vai debatendo a embarcação
Destroçando o engenho naval
Para matar toda a tripulação!
Horror! A maldita borrasca,
Cobre a visão do comandante,
Na náusea a intensa vasca
Faz o cais pairar tão distante!
Sobrevém o planalto costeiro
Evapora a neblina passageira,
Surge impávido navio negreiro
Atracando na costa brasileira
II
Adiante debaixo nos porões,
Cativos os negros escravizados,
Mercadorias para os altos escalões
Todos ofendidos e humilhados
Com os grilhões tão apertados,
Debaixo das intempéries escaldantes
Todos com os membros cerrados
Possuem vozes mudas e deliberantes!
A fome devorando suas energias
Dos seres subjugados na punição,
Já o urubu afoito enfim sorrias
Aguardo o banquete da inanição
Aos montes para eles são jogados
Restos dos alimentos e alguns nacos
Rebelam-se os miseráveis cerceados
Abrindo com os dentes vários sacos
Alimentadas as negras pretas,
De tão negras parecem brancas,
As párias sugam as suas tetas
Visões desnutridas em pelancas
Vão assim abarrotados no convés
Vítimas da cólera e o escorbuto,
Nadando no mar de suor em revés
Parindo no ventre o podre fruto!
E as africanas preces para Ogum
Pelos escravos em contas cantadas
Aos orixás suas ofertas de bodum
Eram lágrimas de alma acorrentadas
Transeuntes em suas passagens,
Com os torsos e suas epidermes
Cobertas com feridas nas viagens
Roem-lhe as carnes os vermes!
III
Na casa do senhor de engenho,
Ou na casa grande da senzala
O negro em seu labor ferrenho
Adoentado era posto à vala
Na moenda posto no esforço
Com o carro de boi assim seguia
Doíam-lhes o pescoço e o torso
Do anoitecer ao nascer do dia
Fora por anos a terrível jornada
De meses e anos sem paz,
Comendo os restos como feijoada
Vigiados pelo mestre capataz
O chicote estrala no lombo
Do negrinho que herda a preguiça
Cada açoite é um tombo
Dado pela paulada na perna roliça
Suas armas foram os berimbaus,
A mística das dançantes capoeiras
Seus chinelos feitos com paus
E guizos pendurados nas coleiras
Quando escurece lá no campanário
Erguem-se as rodas de candomblé
Cada negro em seu próprio calvário
Oram na flâmula de uma viva fé!
Cada região tinha sua certa banda
Do sincretismo pelo catolicismo,
Reforçado pela mística umbanda
Colonizou-se todo o africanismo
No embate alguns apenas fugiam
Nas florestas assentavam quilombos
Capturados em honra combaliam
Tais quais os aprisionados pombos!
E um gênio ainda que escravo
Autonomeou-se senhor Zumbi,
Negro forte de espírito Bravo
Foi o último da resistência a cai
Mas o homem branco europeu
Rendeu-se a tentação africana
Quando a escrava faceira gemeu
No lençol úmido da sua cama
Desta geração veio o mulato
E a libertação através da realeza
A lei áurea era acertado fato
Assinado por uma jovem princesa
Mesmo que a negra escravatura
Fosse pelos colonos rejeitados,
Toda uma geração vindoura futura
É o tropel dos negros exilados