A Derradeira Bomba
Vai o patriota à guerra.
Lá, o inimigo o mata.
Quando (morto) volta,
o vigário o benze,
o coveiro o enterra,
a viúva chora...
E sobre a sua cova
brotam umas florezinhas amarelas,
belas, mas sem aroma nenhum.
E enquanto, sob a terra fria,
os soturnais serafins
(a quem chamamos de vermes)
cumprem a sentença de Deus,
o seu cachorro o espera;
o agiota o perdoa...
Só o poeta velho,
que, de manhã logo cedo,
ao folhear o jornal,
dá seus espirros diários;
só este, que nunca foi numa guerra,
que nunca teve inimigo,
não tem mulher, nem cachorro
é quem planeja vingá-lo.
Se inclina então sobre a mesa...
Se entrincheirando entre livros,
vai pelas valas dos verbos
desforrar o sangue do estranho,
seu bravo irmão invisível.
Filhos da mesma nação,
têm almas, pois, diferentes.
são de destinos opostos,
mesmo perdidos no mundo.
Um pôs de lado a rotina,
se armou de bomba e fuzil
contra rivais nunca seus,
por uma paz surreal
que lhe venderam num filme.
O outro deu-se a vocábulos,
fez do papel e da pena
uma clave cega e brutal.
Com ela, enfrenta a si mesmo
e aos monstros vis da existência;
pratica o ódio que nutre
pela infinita mesmice
das ordens, leis e conceitos
que regem a ele e ao outro,
que agora some da vida
como uma gota que beija
a pele ardente da terra.
Enquanto o sol passa longe, lá no alto, lento e extremamente desinteressado.
(Que o astro rei não enxerga
quem morre à bala ou de tédio;
os seus cabelos de fogo
balouçam só por si mesmo,
no muito, pela plumagem
de alguma ave molhada
ou pelas flores de um campo
onde jamais se pisou
com pés impuros de homem).
E enquanto as sombras se esticam,
girando - lento ponteiro
no dia-a-dia relógio -,
segue o poeta brigando
contra uma tropa sem rosto.
O ódio esquenta-lhe a fronte,
lhe acende-vela-irascível
entre o bafio do quarto
- onde está tudo tão velho
quanto o poeta tão velho,
que se enfurece e explode
numa explosão ao invés.
Derrama tinta (e não sangue)
sobre o bolor dos papéis,
num desespero de louco
que luta luta impossível.
Vai morrer velho, o poeta,
soldado preso no corpo;
uma alma assim, libertária,
com amarras de frustração.
Estende a mão para a rua
como quem busca aflição
maior que a que agora sente,
pra pôr nos versos razão
e dar à ira que o queima
uma oportuna sanção.
Mas só encontra o ocaso,
que, há meses, lhe espreita, cínico, por detrás das cortinas cinzentas.
Foi-se o soldado,
findou-se a guerra,
brotou janeiro...
Nasce outro dia!
Mas nem um tiro de rima
acerta, além da trincheira,
o regimento inimigo.
Foi-se o soldado João.
Como é João o poeta.
Como é também o coveiro,
o padre e o agiota.
Não veio um verso sequer
que desse um quê de nobreza
à morte inglória do outro,
o João de arma na mão.
E dói o peito do vate,
não mais de desilusão,
mas d’outra alguma doença
no já débil coração.
E entra a negra empregada
(filha de um outro João),
traz os remédios diários
para alívio do patrão,
que já não sente-se poeta
é só mais um homem-joão.
A negra abre a cortina
- É para um pouco de sol.
Diz ao patrão, mofo e triste,
de olhos sobre os papéis,
onde se vê frases tortas,
horrendas como os defuntos
quando se finda uma guerra.
Mas o sol passa e não entra,
vai sem ri, gigante morno,
pois decidiu, hoje cedo,
beijar as flores sem cheiro
sob a cova do soldado
e notou o quanto humanos
são os seus divinos raios.
Passa em direção à noite,
aonde irá se despir,
lavar seus cabelos crespos
nas profundezas do mar,
depois deitar-se e, sem sono,
pôr-se, em silêncio, a chorar.
Antes, porém, de esconder-se,
mete alguns dedos no quarto
e arranca o cínico ocaso;
queima os vocábulos vagos
e explode uma bomba final
no peito do não-soldado.