Fragmentos (a Uílcon Pereira, mestre e mentor da educação pelo fragmento)
Meu nome é Zalpa Bersanova, chechena, moro em Grozny.
É preciso salvar as crianças. Por causa dos bombardeios elas ficam estrábicas, começam a gaguejar, e algumas param de falar. Durante a guerra anterior, por causa dos bombardeios, muitas crianças ficaram paralíticas, e nem foi possível contar as que morreram. Muitas pessoas deixaram Grozny e a República cruzando a fronteira. Os velhos receiam morrer em terra estranha, ser enterrados lá. Enquanto minha casa não for atingida pelos bombardeios continuo morando em Grozny, mas sei que poderia ter nascido em outro lugar no mundo. Poderia, então, viver em Kosovo, Moscou, Jerusalém ou em uma favela brasileira. Sou chechena, mas poderia ter nascido albanesa ou sérvia. Sou cristã, mas poderia ser de uma família muçulmana, ou budista, ou israelita, ou atéia. Sou perseguida, mas poderia perseguir.
Tenho vinte e cinco anos. Meu sonho? Um cotidiano singelo, acordar manhãzinha na cama manchada do amor, junto ao homem amado e adormecido. Em meu sonho olho-o e imagino: Ele sonha comigo, sonha com o pão que vou comprar para nosso café da manhã na padaria da esquina. Qualquer lugar do mundo possui uma padaria. As nossas estão frias e empoeiradas. Há tempos aqui não fazemos pão.
O tempo da guerra é eterno como o da doença. Quando o corpo adoece parece, nunca mais ficará bom. Tenho feridas no meu corpo e na minha alma. De teima recomeço entre as ruínas. A esperança não me deixa me perder completamente, esvaziada de mim, saco vazio.
Roubamos as casas uns dos outros, nos bombardeamos e torturamos reciprocamente.
Sou jovem, mas meus pés se arrastam como os dos velhos.