A morte ama a todos

Deixe-me passar, estou de saída

Não há mais nada aqui para ser visto

Estou no chão, de joelhos, rendida

De mim mesmo, antes de mais nada, desisto

Minha torre caiu aos escombros, vencida

Inerte, minha triste derrocada, assisto

Ansiando a paz do sono eterno,

Um berço livre das garras do inferno

Lanço, longe de mim,

Meus sentimentos que já não me tocam

Chamo de alívio, não de fim

O perecer dos medos que me sufocam

A vergonha já não castiga meus ombros, enfim,

Pois as memórias já não mais importam

Tudo se dissipa junto ao meu espírito

Tornando-se uma estrela a brilhar no infinito

Mas que divina visão!

Uma jovem a cair do precipício!

Seu sangue se esparramando pelo chão

Anuncia ao mundo o fim do seu suplício

Um rompante de dor e escuridão

Do qual não resta o menor resquício

A morte não é o fim, mas o começo

Por mais alto que pareça o seu preço

A negra mãe me acalenta em seus braços

Meu cadáver debocha dos meus falsos laços

Posso fechar os olhos e dormir feito uma criança

A salvação da morte é minha obstinada confiança

A igualdade que somente ela dá

A despeito da Criação que o homem tornou má

A vida pode dar a última risada

Mas é a morte quem dá a última cartada

Feche seus olhos e entregue-se a ela também

É tolice, desse mundo, continuar refém

Quantas lágrimas e quanto vômito desperdiçados

Para ver sonhos e mais sonhos despedaçados

E junto com eles, sua alma quebrantada

Para os devassos poderem dar uma gargalhada

Estou farta de me flagelar com esperanças frustradas

Chorando, toda a noite, sobre as Escrituras Sagradas

Meu estômago está livre do seu fardo

De chorar no lugar dos meus olhos

A ira o atravessa feito um dardo

Oculta no reflexo dos espelhos,

Mas exposta no meu abdômen dilatado

Não importa, agora está tudo enterrado

Junto à minha carne em decomposição

Cujo coração já foi arrancado

Deixaram-me nua

Tiraram-me tudo o que eu tinha

É assim que uma essência definha

Feito um cão uivando para a lua

Nunca me bastou chorar sozinha

Por isso derramei meu rancor na rua

Saboreie minha desgraça também, vizinha

Feito um abutre a deliciar-se da carne crua

Vaguei por esse mundo

Amargando tanta ira, que enlouqueci

Em meu próprio inferno, mergulhei fundo

A vida passou diante dos meus olhos e não vi

Deixo, em gratidão, meu canto moribundo

A ferida, cuja sangria, transcrevi

Acorde e ouça os corvos cantarem

Assista minhas cinzas se espalharem

Não tenha medo, dê um passo à frente

A mãe generosa ama a todos igualmente

Abrace-a forte, desfrute do seu alento

Em seus braços gélidos, amorteça seu sofrimento

Corra até ela, não a faça esperar

Seja qual for seu credo, ela quer te salvar

Dê sua mão a ela, não tema mais nada e ninguém

Pois a morte ama a todos e a você também