O bode expiatório
"Cada ser humano possuí dentro de si uma câmara escura, denominada como "o vale das sombras", dentro dela habitam os pensamentos mais sórdidos e sombrios que a mente humana é capaz de produzir, não obstante, em seu cerne também mora a beleza dos instintos reprimidos, a fluidez e a naturalidade da vida. Caso o indivíduo não venha a conhecer e integrar tuas sombras, elas emergirão sob os espaços e se projetarão através de atos hediondos."
Um vilarejo passou a ser assolado por fortes histerias - nenhum ser humano era capaz de confiar nem mesmo em sua própria sombra.
Ora, e deveríamos confiar? Nós, meros mortais, habitados por toda a sorte de pulsões desconhecidas e abismos mentais.
Dentro do vilarejo as pessoas perseguiam umas as outras e ninguém era capaz de ver a própria sombra sob a luz dos dogmas.
No escuro a sombra não deixava de existir, mas devorava cada espaço que o indivíduo adentrava, abraçando suas disforias e nutrindo tuas pulsões destrutivas.
Todos do vilarejo se remoiam na tentativa de ocultar as sombras, mas elas só adoeciam reprimidas, como bestas inibidas.
Eu vagava por entre os abismos saturados em busca de mim. - Ah, e como encontrar-me se pereço no vale das sombras e jamais consigo integrar-me à luz de um mundo indiferente?
Os bueiros eram como úlceras abertas ao léu, expelindo todos os despojos que o vilarejo tentava encobrir com o asfalto.
A peste pairava e inflamava os meus pensamentos em um prelúdio febril.
E as bruxas queimavam apáticas junto ao sol do meio fio.
Enquanto o excesso de luz cegava, muitos eram tirados de suas trevas particulares para que fossem escravos da luminosidade (...)
Nas ruas eu vagava e na distância
vi um bode preto ser apedrejado e gatos pretos serem esfolados.
Senti teus cascos baterem em meus neurônios - meus sentidos foram lentamente se esvaindo, mas permaneci desperta para ouvir crianças cantarolarem:
Black Phillip, Black Phillip
O mal jaz escondido!
Black Phillip, Black Phillip
Sob as aparências latejam os vícios!
Black Phillip, Black Phillip
As sombras tua pelugem irá tragar!
Assim se deu a sinceridade da inocência erigindo os cânticos da verdade; de súbito a estranha criatura balbuciou em direção a multidão:
- Ora, vós que projetais os males em mim ou em qualquer um; não vedes que nutrem asco por tudo aquilo que escarram em frente ao espelho?
Antes de absorve-los em minhas entranhas com todas as tuas ideias; eu era apenas um animal sem linguagem.
E já deviam saber, que odeiam a si mesmos, e denominam mal, tudo o que não são capazes de compreender ou ser.
Sintam o cheiro pútrido que de mim exala; são os retratos vaporosos de uma vida psíquica encarcerada.
Sei que censuram os meus chifres, pois eles perfuram teus olhos já cegos para as chagas da vida.
Sei que anseiam aprisionar em mim, todos os que se diferem na multidão, e por fim purificar tuas consciências da própria ignorância.
E como irão exorcizar o que jaz intrínseco as suas mentes?
Ora, o demônio não sou eu, criaturas vis, falo por meio da fagulha luminosa que habita cada um de vocês - Enfrentem teus demônios e abracem a magnitude côncava de seus abismos.
A criatura calou-se em um silêncio sepulcral. Minh' alma por fim, retornou ao corpo e de meus olhos as lágrimas vertiam em liberdade.
Nas águas do renascimento me batizei acima de toda a moral e me fundei fora dos bons costumes.
Um padre e uma prostituta se beijaram em meio a orgia dos anjos, e dessa santidade pútrida nasceu uma criatividade que rompeu os extremos da hipocrisia.
Em um ritual de liberdade e justiça,
todos os inocentes foram libertos e a peste recaiu sobre os Fariseus.
Internamente reiterei-me com a fagulha de luz que adormecera em minha escuridão.
- Letícia Sales
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