Insônia ressonante
"O bater de asas de uma coruja pode alterar todo o curso de uma noite anuviada pela densidade de pensamentos despertos em tempos longínquos."
Há uma coruja em minhas entranhas, e enquanto todos dormem, ela permanece acordada com os olhos dilatados sobre os meus erros, penetrando cada pulsação deles.
Teu voo é silente, mas pressinto teu olhar destilar a vida que há em mim enquanto aterrissa sobre as asas da minha cognição.
Ao adentrar o meu seio, a ave deixou rastros de melancolia e pousou na orbe dos meus pensamentos com a imponência de quem avalia.
Tua postura é fatídica e faz a cabeça palpitar em dilatações dolorosas; é o movimento do coração de todos os mistérios, estes que permanecem inertes durante o pudor diurno.
Tento alimenta-la com livros, mas a fome da observadora é insaciável, ela que faz longas pausas durante a digestão das palavras, só para enxergar o que ninguém mais vê.
Tento desviar minha atenção através do ócio, mas lá está ave remoendo minhas entranhas e fenecendo o sono com seus olhos arregalados em pleno labor noturno.
E todas as noites desde os primórdios de mim, a deusa Atena envia seu pássaro para lembrar-me da justiça e da minha jornada dolorosa através da sabedoria.
A ave prodigiosa atravessa meu flanco, e por vezes destila os meus olhos, exprimindo em conta gotas tudo o que guardei (...)
Ah, eu poderia adormecer com a poética dos teus olhos e ignorar a filosofia de Kant ao render-me ante as armadilhas metafísicas.
Mas permaneço a atravessar os canais da minha memória, a procura de uma ínfima mudança no passado que alteraria o percurso de todas as coisas.
Ó soberana da noite, tu que fizestes toca em minha introspecção e ressoa o mundo em um eterno despertar; tu que decodifica-me em mistérios e isola-me da alegria do mundo.
Peço para que ao menos espalhe minh'alma que jaz dilacerada por entre aqueles que perecem fora da órbita do mundo.
Assim, das minhas cinzas nascerão dias manchados pela luz da compreensão.
- Letícia Sales
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