O corvo (tradução de Caio Silas)
O corvo
Numa meia-noite densa
Eu de mente muito tensa
Lia um raro e interessante
Calhamaço de rituais.
Cochilando, à revelia,
De repente, um som crescia,
Como alguém que então batia
Gentilmente em meus portais.
“É visita – eu repetia
– À procura em meus portais,
É só isso e nada mais”.
Ah, eu lembro com clareza
Um dezembro de tristeza,
Cada brasa outrora acesa
Fez-se em sombras fantasmais;
E a ansiava como à aurora,
Triste eu lia àquela hora
Contra a falta de Lenora,
Pois com ela foi-se a paz!
A donzela reluzente,
Quem os anjos citam mais,
Quem se foi pra nunca mais...
Na parede os cortinados
Murmuravam tresloucados,
E excitavam-me terrores,
Ilusões como jamais.
Aflição, taquicardia!
Enganando-me eu dizia:
“Alguém que em volta tardia
Pede abrigo em meus portais.
PEDE ABRIGO EM MEUS PORTAIS! –
Contra a noite escura e fria...
Isso mesmo! Nada mais...”
E forçando-me o vigor,
Apressei-me sem temor:
“Meu senhor ou minha dama
Envergonho-me demais,
Porquanto eu ali dormia.
Quando vossa senhoria
Gentilmente aqui batia
À procura em meus portais
Vosso toque eu pouco ouvia.”
Liberei-os ademais
Vi a noite e nada mais...
Sondei a treva vazia
Demorei-me, pois tremia,
Assombrado com visões
Neste mundo sem iguais.
E na muda escuridão
Sem qualquer agitação
Uma única expressão:
“É Lenora?”, em som fugaz.
“É Lenora!”, repetiu-me
Um só eco, leva-e-traz.
Foi só isso e nada mais...
Quando então eu já volvia
E minh‘alma padecia,
Não demora e retinia
A batida mais e mais.
“Certamente é na janela,
Algo bate contra ela,
Deixa estar, que com cautela,
Desse oculto irei atrás;
Só preciso de um momento
E o mistério se desfaz.
Pois é vento e nada mais.”
Quando abri minha janela
Agitada veio dela
Uma negra e lauta ave
De outras eras divinais.
Sem sequer prestar tributo
Não sustou um só minuto,
Como um nobre resoluto
Ela pousa em meus portais,
Sobre um ícone de Atena
Pouco acima dos portais.
Só pousou e nada mais...
Esta negra ave fazia
Esquecer-me da agonia
Quase eu ria admirado
De seu ar grave e tenaz.
“Apesar da pouca crina,
Tua aura é bem ferina,
Ave negra de rapina
Vinda dos funestos cais.
Diz-me a graça que te invoca
Nas ravinas infernais.”
Ela disse: “nunca mais!”
Espantou-me ouvir a fala,
Duma besta, assim tão clara,
Inda que sem serventia,
Sem sentido os termos tais,
Pois, sem dúvidas, concluía:
Nem um homem haveria
Tido aquela primazia,
Uma ave em seus portais
Sobre o busto duma deusa,
Bem no alto dos umbrais,
Batizada “Nunca mais.”
Sobre a estátua, empoleirada,
Já não mais dizia nada,
Tal as últimas palavras
Percutissem-na, fatais.
Conservou-se ali, serena,
Sem mover uma só pena
Sussurrei-lhe, pois, apenas:
“Companheiros não há mais
Como a esp’rança se extinguiram,
Como eu sei, também te vais...”
Disse o corvo: “Nunca mais!”
Meu espanto foi enorme
Da resposta tão conforme.
“Certamente”, murmurei,
“Só sussurra ‘nunca mais’,
Aprendeu de seu senhor,
Quem um duro dissabor
Acossou-o té o clamor
Resumir-se a estes ais;
Quando os gritos da descrença,
Infelizes e brutais,
Eram “Nunca e Nunca mais!”
Mas o corvo conseguia
Cativar-me a simpatia,
E assentei-me à frente dele,
Da escultura e dos portais;
Relaxado, então, o via
E a mim próprio eu inquiria,
Que de fato quereria
A ave de eras ancestrais –
Cadavérica e maldita
Ave de eras ancestrais –
Crocitando: “Nunca Mais!”
Pois assim eu refletia,
Sem discurso e alegoria
Àquela ave, cujos olhos
Enlevavam-me, fatais.
Sem parar eu refletia,
Meu pescoço até pendia
No espaldar em que eu jazia
Sob brilho tão vivaz –
Ela aqui se recolhia
Na luz púrpura, vivaz,
Mas se foi, pra nunca mais!
Em seguida o ar se agrava,
Um perfume lhe emanava,
Desde os céus, um nobre anjo
Com passadas musicais.
“Miserável!”, choro e digo,
“O teu Deus te manda abrigo
Dá-te oblívio a teu castigo,
Estes cruéis memoriais!
Toma-o já, tem-no contigo,
Foge dela e de teus ais!”
Disse o corvo: “Nunca mais”
“Vaticina-me, maldito,
Sejas ave ou ser proscrito!
Não me importa que te venhas
Das aragens infernais!
Não demonstras temer nada
Desta terra devastada,
Desta casa atormentada,
A verdade, então, sem mais!
Há consolo neste mundo?
Diz-me agora, pois, sem mais!”
Disse o corvo: “Nunca mais.”
“Vaticina-me, maldito,
Sejas ave ou ser proscrito!
Pelo céu que nos abarca,
Pelo Deus de nossos pais,
Esta alma aqui plangente,
Noutra vida, mais à frente,
A donzela mui clemente
Quem os anjos citam mais;
Como estrela reluzente,
Cingirá uma vez mais?
Disse o corvo: “Nunca mais.”
“Seja o derradeiro dito”,
Eu gritei, “corvo maldito!”
“Volta junto às ventanias,
Às ravinas infernais!
Toma o teu engodo e ruma,
Não me largue uma só pluma!
Quero estar sem coisa alguma,
Saia já de meus portais!
Tira a garra de meu peito
E teu ar de meus portais!
Disse o corvo: “Nunca mais.”
Mas o corvo não se ia,
Antes fica, à revelia,
Sobre o ícone de Atena,
Bem acima dos umbrais.
Seu olhar em demasia
Lembra o mal em euforia;
Sob a lâmpada tardia,
Pelo chão seu vulto jaz;
E minh’alma, aprisionada,
Neste vulto que a perfaz
Não se solta... nunca mais!
Tradução: Caio Silas