TÉSSERAS AZUIS

TÉSSERAS AZUIS I (*)

Enxergo azul a campina de meus sonhos

(lá não existe horário de verão);

de fato, é sempre outono e saberão

que nunca faz calor nem frios medonhos.

É azul esta campina em tais bisonhos

sonhos meus, nessas sombras sem paixão,

quando percorro a pradaria em suspensão,

sem pisar em rosetas. Os pés exponho

à fragrância da relva... Logo eu,

que sempre ando calçado, mesmo em casa

e nem sequer de meias piso o chão;

mas nesse mundo de sonhos que é só meu,

meus pés são verdes, sobre os quais se embasa

a prata amarga do meu coração.

(*) Pedrinhas coloridas com que se fazem mosaicos.

TÉSSERAS AZUIS II

Eu acredito que ali vivam sentimentos

por trás do corpo nutrido com vaidade;

eles amam, talvez, a tua saudade,

as lembranças da infância em seus momentos

a liberdade dos mil agastamentos

que realmente é a desumanidade;

o que se exige das crianças em tenra idade

já se iniciando modelo e treinamentos.

É bela essa mulher. Bolinhas rosa

contra o estofo azul e a pele clara

que não se expôs demais à luz do sol

e aos refletores se mostra tão airosa,

imagem verde e certamente cara,

para mostrar-se a todos qual farol.

TÉSSERAS AZUIS III

Anfitrite terá assim de desnudar-se,

se quiser dos brasileiros a atenção;

poucos poetas há. Têm mais paixão

por futebol, cachaça e carnaval

e nos desfiles vêm a revelar-se

de corpo inteiro, em pose natural,

essas mulheres de corpo escultural,

nesses requebros carnais sem emoção.

O que sobra, afinal, para Anfitrite?

Ao requerer do povo a adoração,

terá primeiro de a todos convencer,

nudez perfeita que ao desejo incite,

para depois escutarem a pregação

que a seu louvor o possa converter.

TÉSSERAS AZUIS IV

Ou quem sabe se é o oposto verdadeiro,

olhares cínicos, acostumados à nudez;

todo o mistério feminino se desfez:

quadrís e seios, tudo é corriqueiro.

Bikinis, Topless, o corpo inteiro,

ostentado sem receio de sua tez

queimar-se sob o sol, desfaçatez

que tanto câncer provoca bem ligeiro...

Quiçá atenção maior despertaria

qualquer mulher vestida inteiramente,

mesmo que ondas sua túnica formassem,

logo após que das vagas surgiria,

majestosa em seu porte diferente,

perante o qual os olhares gravitassem...

TÉSSERAS AZUIS V

Talvez ainda tenha de cercar-se

de nereidas desnudas num cortejo,

a despertar nas vistas o desejo

de finalmente a ela consagrar-se.

Anfitrite poderia assim mostrar-se,

vestida em majestade, como almejo

e dominar tanto o Amazonas como o Tejo,

qualquer fosse o rio ou lago a encontrar-se.

Mas como Hera, a domesticidade

e a proteção do lar assim comanda,

Anfitrite requer fidelidade,

embora o mundo encha de aventura,

para o dever materno a mulher manda,

como o sinal supremo de ventura!

TÉSSERAS AZUIS VI

E assim devolvo meu olhar para a mulher,

qual azulejo em meu computador,

com mais admiração do que sexor,

perfeito o corpo qual hoje requer

o ideal estético, do grego o copiador,

num avaliar que fértil vê-la quer,

que duplicar a si mesma é seu mistér,

não sendo apenas feita para o amor.

Ninguém acuse meu sonho de machismo,

também a vejo como sendo atleta,

mais o encarnar de tudo quanto é belo,

ao homem superior no feminismo,

satisfazendo meu ideal de esteta,

com que a admiro no mais puro zelo!

TÉSSERAS AZUIS VII

Nem todos são assim. Talvez um gole

em seco, a intimar masturbatório,

em breve instante de prazer inglório,

talvez a imagem rudemente esfole;

talvez imprima seu retrato e o cole

numa parede, igual que em clerestório,

talvez o beije qual sacro cibório

que a imaginação fremente mais empole.

Mas eu a olho e vejo nos seus traços

e no seu corpo, dos seios à vagina,

muito mais que um objeto do sexual;

não cede a deusa o gozo dos abraços,

mas beijos puros da espuma peregrina,

que há de gerar em parto natural.

TÉSSERAS AZUIS VIII

Nunca a encontrei. Que a possa ver duvido,

salvo em mosaico do templo a contemplar

na campina de meu sonho azul do milenar;

paixão não tenho, Posêidon é o marido.

Não sou amante de um amor perdido,

com tantos gregos assim a disputar,

não vejo em tésseras meu desejo despertar;

se ali todos podem ver, eu mesmo olvido.

Mas a seu jeito, ela exerce um sacerdócio,

sacro consolo para os solitários,

longo consolo para a alma de um poeta

e se a descrevo agora, em puro ócio,

roubado a meus deveres multifários

é que um rasgão da alma me completa.

TÉSSERAS AZUIS IX

Sempre apreciei a visão do corpo humano:

é a minha raça, afinal, e lhe pertenço;

ante a nudez da estátua eu me convenço

da antiguidade de meu ideal arcano.

Percebo algo realmente sub-humano

naqueles que contemplam de olhar tenso

certa imagem de mulher em painel denso,

nessa malícia de pecado insano.

E assim encontram na obra do escultor,

na perfeição do corpo masculino,

sentido outro que o padrão mais peregrino,

criado pelos gregos do esplendor,

reduzindo o artista à sua feição,

ao lhe lançarem homossexual acusação.

TÉSSERAS AZUIS X

Tampouco venham me acusar de homofobia!

Cada um o seu prazer que vá buscar

onde quer que sua tendência o inclinar,

ou se restrinja tão só à fantasia,

mas que não venham assim prejudicar,

na interpretação do que a si próprios afligia

essa imagem do artista em sua magia,

que simplesmente não conseguem alcançar!

Quanta pobreza em uma arte sem o nu!

Houve uma orgia de mil panejamentos

sobre os afrescos da Capela Sixtina...

Ou de Miró a desprezar o fatiar cru

do corpo humano em tantos fragmentos,

como um espelho de nossa humana sina!

TÉSSERAS AZUIS XI

Eu volto à imagem reclinada em azul,

sua cabeça a deitar languidamente,

sobre um braço dobrado casualmente,

enquanto o outro se atravessa dul-

cemente, com os dedos a brincar

contra essas ondas frementes de umidade,

que na enseada escorrem sem maldade,

pelo prazer de suas costas carinhar.

E assim contemplo as dobras sugestivas,

empapadas de água, um nó desfeito,

qual Aphrodite a prometer prazer;

desvio o olhar para suas vistas pensativas:

ela é Anfitrite com o ventre seu perfeito,

vida marinha em sua miragem conceder.

TÉSSERAS AZUIS XII

Mas eu não vou até o mar por Aphrodite,

a ver espumas de mulher flutuantes

e nem à praia irei por Anfitrite,

para pregar a religião dos navegantes.

Eu só preciso que a ilusão me dite

como escrever meus versos delirantes,

que essa visão onírica me incite

a tal derrame de cânticos constantes.

E nem sequer no sonho a esculpiria,

nem se pintor eu fosse, a pintaria,

para guardar o transitório feminino;

mas mulher bela eu amo, por saber

que envelhece um dia e há de perder

o seu poder de atração quase divino...