Alceste, o ocultista de Vilnius (Canto IV)

"Ai, Jesus! Não vês que gemo,

Que desmaio de paixão

Pelos teus olhos azuis?

Que empalideço, que tremo,

Que me expira o coração?

Ai, Jesus!"

(Álvares de Azevedo)

I

Lentamente os olhos Alceste abriu

Quando de seu mortal sono despertou.

Num ambiente totalmente novo se viu,

E que estava morto ou sonhando pensou.

Deitado estava numa cama confortável,

Dentro de um quarto iluminado e agradável;

Num grosso cobertor estava enrolado

E seus pertences descansavam ao lado,

Num velho criado-mudo um tanto batido.

"Que faço eu em meio a este conforto?

Talvez finalmente encontro-me morto

E em meio aos Céus fui recebido...

Ao que era a Terra parece-me tudo igual –

Mas para alguém como eu não acho isso mau."

II

Naquele momento a porta se abriu,

E em seguida o quarto adentrou

A mais bela mulher que Alceste já viu.

Quanto tempo minha pena esperou

Para descrever o feminil ideal

Que surgirá neste poema afinal!

Com esta mulher muitas vezes sonhei,

E em vão por ela avidamente procurei

Até que, do pior modo, vim a perceber

Que o mundo já não mais serve ao amor

(Ainda mais se és um mero – e pobre – autor).

Meu herói, tal como eu, não deve sofrer,

Então meu sonho a ele haverei de lho dar,

Para que, pelo menos, sonhe-o em meu lugar.

III

Um gorro seus longos cabelos cobria;

Cabelos do mais lindo tom de dourado

Que aquele que o visse julgaria

Que de âmbar cada fio foi lavrado.

Seus olhos gentis Alceste fitavam –

Azuis, como o Mar Báltico, cintilavam.

Alva era sua pele, e às faces graciosas

Adornavam-lhas duas rosinhas mimosas.

Um longo vestido e uma blusa trajava,

E um branco e limpo avental os cobriam,

No qual curiosos padrões de linhas se viam.

Numa das mãos uma bandeja carregava,

E aromas que Alceste nunca sentira antes

Exalavam das travessas fumegantes.

IV

Em todas as suas viagens nunca vira

Alceste uma mulher daquela beleza –

Muito menos uma que antes lhe sorrira

Com aquele desinteresse e gentileza.

Dum modo invulgar, romântico, era bela;

E nosso herói viu-se encantado por ela.

De pronto quase todo o ânimo recobrou

E com uma voz tênue lhe indagou:

"És tu um dos milhares de anjos de Deus?

Bom, agora estou certo mesmo que morri,

Pois na Terra é improvável existir

Alguém com a beleza e os encantos teus.

Mas nunca fui lá grande coisa em vida...

Tua presença é-me desmerecida."

V

O rosto da moça ficou carmesim,

E postou-se acanhada visivelmente:

"Fazes um juízo equivocado de mim;

Sou eu uma simples mulher somente,

Que a um anjo não se parece em nada;

Teu elogio, porém, deixa-me lisonjeada.

Mas não compreendo que conversa é essa:

Quem botou-lhe que estás morto na cabeça?

Considere-se um moço de muita sorte:

Achei-te jazendo na neve, desmaiado,

Prestes a desmaiar de exaustão e esfaimado,

Mas fostes capaz de enganar a morte:

À minha casa com esforço o carreguei,

E até mostrardes sinal de vida esperei."

VI

"Por muito mais tempo não a posso enganar",

Respondeu Alceste, infeliz novamente.

"De novo ela tentará vir me levar

Se continuar com este jejum intermitente."

"Contra isto já estava eu precavida,

E não permitirei que lhe tirem a vida.

És em casa um hóspede recém-chegado,

E com gentileza serás por mim tratado.

Lhe trago nesta bandeja, ainda quentes,

Alguns cepelinai muito saborosos

E pães de centeio não menos gostosos

Que espero, por ora, serem suficientes

Para mantê-lo satisfeito – e vivo",

Disse a moça, de ânimo sempre prestativo.

VII

Alceste nunca antes ouvira falar

Em cepelinai, mas isso não lhe importava:

Era comida, e não podia recusar,

E o cheiro profundamente o agradava.

Gentilmente a moça a bandeja o entregou,

E uma daquelas iguarias degustou:

Eram bolinhos de batata recheados

Com carne, queijo e temperos variados.

Achou que era a coisa mais agradável

Que comera em sua vida inteira:

"Estou certo de que esta é a vez primeira

Que algo tão exótico e deleitável

Por meu atrofiado paladar passa

E que minha fome prontamente rechaça!"

VIII

"Que tenhas gostado deles fico feliz",

Respondeu a mocinha tão encabulada.

"Com minhas próprias mãos eu os fiz,

E tua opinião muito me agrada."

A tigela toda Alceste já devorara,

E para os pães pretos de centeio passara.

Logo o vácuo no estômago preenchera

E boa parte das forças reestabelecera.

"Sou-lhe muito grato por sua bondade,

E muito mais por me apresentar

A estes petiscos, que nunca vim a provar.

Ainda penso que faltou-me com a verdade

Ao dizer-me que não és um anjo do Céu;

Tal tratamento cortês nunca tive eu."

IX

"Então esta é-lhe mesmo a vez primeira

Que um cepelinas vens a provar?

Só podes então ser de terra estrangeira;

Aqui são corriqueiros em todo o lugar

E não há quem não saiba prepará-los

E, seja no almoço ou no jantar, apreciá-los.

Se este é o caso, de que país vieste,

E que acaso de tão longe o trouxeste?

Como foi que na neve se perdeu,

Em que circunstâncias aqui chegou

E quem nossa língua tão fielmente o ensinou?

Oh, conte-me tudo que lhe sucedeu

Em tuas jornadas, hóspede misterioso!",

Disse a moça num tom suplicante e curioso.

X

Alceste por um momento hesitou,

E seu semblante encheu-se de preocupação.

Finalmente à inquisitiva moça falou:

"Minha história mais parece uma ficção

Escrita por um louco de gênio febril;

Passei por tragédias e dissabores mil

Que se viesse detalhadamente os contar,

Teus fios de cabelo em pé iriam se postar.

Talvez até daqui me enxotarias

Achando que sou um lunático fugido

De algum sanatório, e que tem entupido

O crânio de delírios e fantasmagorias...

Portanto, minha amiga tão boa e dileta,

Insisto que deixe minha história secreta."

XI

Os olhos da dama brilharam com ardor,

E sua curiosidade foi redobrada.

"Não importa o quão delirante ela for,

Para ouvi-la toda estou preparada.

Em toda a minha jovem vida, és a primeira

Pessoa oriunda duma terra estrangeira

Que tive a oportunidade de conhecer,

E muito gostaria de vir a saber

Como vivem as pessoas mundo afora,

Já que de minha própria terra não saí

E além desta cidade nada conheci.

Reconsidere tua assertiva agora,

Ou senão teu sossego irei perturbar

E mais cepelinai não vou lhe preparar."

XII

E nosso herói, desta forma encurralado,

Respondeu: "Pois bem... Aceito o teu trato.

Mas não te esqueças daquele velho ditado –

A curiosidade matou o gato."

Fundo, bem fundo, ele suspirou,

E desde o começo à mocinha narrou

A história que vêm desfrutando até então

(E se alegram as fibras de meu coração

Por ainda continuares aqui comigo

Nesta dura jornada me acompanhando

E meu singelo conto estares apreciando,

Ó estimadíssimo leitor, meu amigo!).

Finda a narrativa, estática a moça estava;

Estupefata, sua boca um "oh!" formava.

XIII

"Nem se eu tentasse jamais poderia

Criar uma história tão fantasiosa

Repleta de reviravoltas e magia –

Mais parece uma invenção fabulosa!

É um relato muito interessante,

Por mais que pareça, de fato, delirante;

Não creio, porém, que estejas mentindo",

Concluiu a jovem donzela, sorrindo.

"Se realmente com São Cristóvão se encontrou,

É sinal de que lhe chamou a atenção,

E ele está lhe dando sua proteção

Desde o momento em que a este país chegou.

Por Deus e os santos foste abençoado,

E logo acharás o que tens procurado."

XIV

"Parte de meus objetivos conquistei:

Por algum rosto amigo eu procurava,

E parece-me que finalmente encontrei

Aquilo pelo qual eu sempre almejava.

Sou-lhe grato por ter me recebido

Em seu país, e por ter me acolhido

Em tua casa – espero não vir a incomodar-lhe

E juro que haverei de compensar-lhe

Quando minha saúde se reestabelecer.

Já que ficarei por um bom tempo contigo,

E agora consideras-me um amigo,

De ti também gostaria de saber:

Minha história contei-lhe sem pestanejar.

Conte-me a sua, ou irei me magoar."

XV

"Comparada à tua vida tão interessante,

A minha não tem nada de espetacular.

Minha história é singela, e nada fascinante,

Mas ainda assim haverei de a narrar.

Sou uma mulher comum, porém honrada,

Que pelo pai somente foi criada;

Minha cara mãe veio a falecer

Quando eu era pouco mais que um bebê,

E não lembro-me de muita coisa sobre ela.

Meu pai, porém, muitas vezes me contou

Que seus traços a mim ela passou,

E que minha beleza se iguala à dela.

Aos dois sou eternamente agradecida

Por terem dado-me o dom da vida."

XVI

"Prefiro de tua história a pureza

Tão doce e repleta de simplicidade –

Trocaria estas andanças pela beleza

De uma vida pacata, dizendo a verdade.

Até hoje, não sabia o que era parar

Num único país para descansar

No que remotamente uma cama lembrasse

E era raro que tão bem eu me alimentasse.

À tua mãe dou admiração e respeito;

Devia ser mesmo uma mulher maravilhosa

Por ter dado à luz alguém assim tão formosa.

Mas me diga: haveria agora algum jeito

De ver o teu pai? Poderia chamá-lo?

A ele também gostaria de saudá-lo."

XVII

O sobrolho da amável moça se franziu,

E um pouco de sua alegria se dissipou.

"Há algumas semanas meu pobre pai sumiu,

E ninguém mais na cidade o avistou.

Pela manhã sempre saía a passear

E de seus afazeres então ia cuidar,

Mas quando não voltou na hora habitual

Pensei que lhe ocorreu algum tipo de mal;

Por toda a cidade eu o procurei

E a polícia também foi acionada,

Mas até agora não encontraram nada...

A esperança, porém, não perderei

E irei seguir meu amado pai procurando,

Seu retorno impacientemente aguardando."

XVIII

"Sou um ocultista, não um detetive,

Mas farei o possível para lhe ajudar,

Já que foste a primeira amiga que tive

Há séculos, e insisto em lhe recompensar

Pela ótima comida e o abrigo.

Haverei de ficar aqui contigo

Para demonstrar-lhe que tenho etiqueta;

Não seria uma atitude muito correta

Deixar uma dama indefesa sozinha.

Entrementes tenho uma pergunta importante

Que fugiu-me da mente até este instante –

Para não insistir no erro, faço-a agorinha.

Minha protetora, por mim estimada,

Qual é o nome com que foste agraciada?"

XIX

"Mais tens tu de um cavaleiro errante

Do que de ocultista, em meu parecer –

És muito educado e bastante galante.

Enfim, meu nome irei lhe dizer

Mas julgo adequado eu lhe ressaltar

Que o teu também ainda não veio a contar,

E já que passastes a ser meu protegido,

Tudo sobre ti me deve ser conhecido.

Portanto, peço-lhe que me prometa

Que também dirá-me o nome teu

Depois de eu revelar-te o meu."

"Aquiesço, se isso lhe aquieta",

Respondeu Alceste com alegria.

"Muito bem, então! Me chamo Dalia."

XX

"Ora, Dalia, Alceste me chamo,

E já que sou o teu galante cavaleiro,

Como minha donzela eu a proclamo

No de meus atos cavalheirescos o primeiro."

"Muito prazer tenho eu em conhecê-lo,

Ó Alceste, meu Dom Quixote tão belo!

Já brigaste com muitos moinhos de vento,

Agora descanse! Aproveite o momento."

"Realmente esta não é uma má ideia;

Mas espero eu revê-la brevemente

E provar de tua culinária novamente,

Minha cara e maravilhosa Dulcineia."

Corada de vergonha o quarto ela deixou;

Pensativo, o teto Alceste fitou.

XXI

Pouco antes de sentir o sono chegando,

Alceste deixou o pensamento vagar,

E sem perceber estava devaneando

Até que adormeceu e pôs-se a sonhar.

Revia nos sonhos aqueles olhos azuis

Que enchiam-lhe o peito de saúde e luz,

E não recordava sentir tal sensação

Previamente dentro de seu coração.

Sem dúvida alguma estava apaixonado!

(Ao leitor que for mais vivido e experiente:

Um dia já sentiste o mesmo que ele sente.

Não caçoe de meu jovem herói enamorado!

Às vezes, um romance não faz mal a ninguém,

E cativa a atenção das senhoras também.)

XXII

À medida que Alceste se recuperava

Com a gentil Dalia sempre ao seu lado,

Mais alegre e aberto ele se tornava,

E seu bom humor tinha se restaurado.

Para substituir as vestes batidas

Quase em farrapos e semidestruídas

Que trajava desde que sua terra deixou,

A boa moça a Alceste presenteou

Com algumas roupas por seu pai usadas.

A camisa branca assentou-lhe tão bem,

E o colete e as longas calças também,

Que exclamou ela, entre aplausos e risadas:

"Que bela armadura, nobre cavaleiro!

Agora és um lituano verdadeiro."

XXIII

E para retribuir-lhe a gentileza,

Certa vez Alceste tirou um dia

Para ensinar-lhe com toda a delicadeza

Sobre seus estudos ocultos a Dalia.

A moça escutava, atenta e deslumbrada,

A cada fórmula que lhe era ensinada,

E, alegre, o mestre achava fascinante

A dedicação de sua bela estudante.

Mas, um dia, quando ela lhe perguntou

Se o estranho anel poderia dele pegá-lo

Porque gostaria de experimentá-lo,

Alceste veementemente o negou:

"Gostaria muito de o autorizar,

Mas só o Mestre, por ora, pode o usar."

XXIV

E assim logo viu-se Alceste curado,

Vivendo seus dias alegremente.

Ao solo lituano já estava habituado

E até mesmo o frio, outrora inclemente,

Há muito já não mais o incomodava –

"À uma brisa", dizia, "se assemelhava".

Cada vez mais íntimo de Dalia

Tornava-se ele a cada dia,

Até que já não podia mais escondê-lo:

Amava-a com uma intensa paixão

Que mal cabia dentro de seu coração,

E decidiu a ela finalmente dizê-lo.

A oportunidade finalmente veio

Quando saíram os dois para um passeio.

XXV

Dalia levou Alceste a uma colina

E ficaram lá sentados os amorosos.

"Quando ainda era uma garota pequenina,

Passava por estes campos maravilhosos

E esta mesma colina eu escalava.

Com meu pai alegremente eu brincava

Até que viesse a me cansar

E em seu colo ia me deitar,

Então ficava eu imaginando

O que além do horizonte eu encontraria.

Jamais acreditava que algum dia

Teria um estrangeiro me visitando!

Mas para alguém que viajaste e viste tanto,

Tua alma é repleta de luto e de pranto."

XXVI

"De nada adianta, se estás infeliz,

Sair pelo mundo afora a viajar.

Em todas as longas viagens que fiz,

Nada achei que pudesse me impressionar

Porque tudo o que vi, dizendo a verdade,

Não passava de monumentos à vaidade

Arrogante e egoísta da raça humana,

Que tudo em que coloca as mãos profana.

Porém, desde que a esta terra cheguei,

A alegria apossou-se de meu coração

E retirei a precedente afirmação,

Pois aqui finalmente encontrei

Algo digno de por mim ser contemplado,

E pela vez primeira fiquei impressionado."

XXVII

"E o que foi esta coisa que contemplou

Que dizes ser assim tão encantadora

E que miraculosamente retirou

A apatia que o dilacerava outrora?

Algum monumento nosso ou construção

Finalmente chamou-lhe a atenção?"

"Posso dizer-lhe que sim, minha querida,

Mas por mãos humanas não foi esculpida

A obra-prima de origem divina

Pela qual perdidamente me apaixonei

No momento em que com meus olhos a fitei.

É você, ó estimada e meiga menina

De olhos azuis tão belos e semelhantes

A dois cristalinos espelhos cintilantes.

XXVIII

"Sempre que me ponho a seus olhos fitar

É como se eu tivesse a sensação

De estar, solitário, a mergulhar

Numa pura e azul imensidão

Na qual não existe pesar ou torpeza;

Apenas uma infinita beleza

Que deixa minha alma extasiada

E de quaisquer fétidas nódoas lavada.

Queria ter sempre perto de mim

A doçura destes olhos me observando

E com zelo de meu coração cuidando.

O que quero dizer com tudo isto, enfim,

É que desde que a conheci eu a amo,

E em voz alta finalmente o proclamo."

XXIX

Dalia tomou as mãos de Alceste

E disse-lhe, a voz de emoção carregada:

"Esta foi a coisa mais bela que disseste;

Alegro-me de por ti ser amada.

No exato momento em que o conheci

Nestes teus olhos compenetrados vi

Dois misteriosos poços de escuridão

Que escondem o mais terno coração

Que nunca num homem pude antes encontrar.

A luz de meus olhos nos teus lançarei

E teus muitos enigmas desvendá-los-ei

Se deixares-me tua alma iluminar.

Terás para sempre o meu amor,

Não importa o que fizeres ou para onde for."

XXX

Os dois então sua união selaram

Com um apaixonado beijo de amor,

E fortemente em seguida se abraçaram.

Alceste sentia no peito um calor

Que agitado e eufórico o deixava,

Mas dessa estranha sensação muito gostava:

Pela primeira vez o amor descobria,

E em seu rosto se estampava a alegria.

Por ora, darei ao casal privacidade;

Afinal, ninguém gosta de ser perturbado

Quando de sua amante está acompanhado.

(Quais leitores confirmam-me se isto é verdade?)

Que fiquem a sós, felizes assim,

À medida que este canto chega ao fim.

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 05/03/2018
Reeditado em 05/03/2018
Código do texto: T6271200
Classificação de conteúdo: seguro
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