Alceste, o ocultista de Vilnius (Canto III)

"Lituânia, meu país! És como a boa saúde."

(Mickiewicz, PAN TADEUSZ, canto I)

I

Convosco gostaria de compartilhar

Uma saudosa página de minha vida:

Dum tempo em que era amado e sabia amar,

E antes de ter tomado de poeta a lida.

Conheci uma garota, bela e aventureira,

De olhos penetrantes e pele trigueira;

Por ela fui muito apaixonado

E era-lhe seu servo fiel e dedicado.

Costumávamos passar muitos serões

Sorrindo, inocentemente brincando,

Ou sonhos, confidências e beijos trocando,

Como se fossem unos nossos corações.

Com perfeição lembro que, num certo dia,

Contemplávamos o céu e ela me dizia:

II

"Invejo as vidas dos viajantes

Que deixam o conforto de seus lares

Para saírem pelo mundo, errantes,

À busca de novos, pitorescos lugares.

Tanto neste mundo há para se ver

E povos e países a se conhecer,

Cada qual com suas belezas naturais

E não menos solenes marcos artificiais!

Creio que o melhor remédio à melancolia

É uma longa viagem pelo mundo tomar,

E da fonte da obra divina tragar.

Prometo, meu querido, que algum dia

Numa viagem eu própria partirei,

E comigo, para sempre, o levarei."

III

E eis que este tão sonhado dia chegou,

Mas só metade da promessa ela cumpriu;

Até lá seu coração a outro entregou,

E para sempre com ele pelo mar partiu.

Minha bela amiga nunca mais vi,

E desde então em meu peito senti

Uma desconfortável incompletude

Temperada com uma febril inquietude.

Eis que não pude mais o suportar;

Alguma coisa tinha eu que fazer,

Ou não viveria para este poema escrever.

Das palavras da moça vim a me lembrar:

Arrumei com diligência minha bagagem

E parti, então, em minha própria viagem.

IV

O pesar não deixou-me em nenhum momento;

Por todo o percurso foi meu companheiro.

Se via eu uma paisagem ou um monumento,

Vinha falar em meus ouvidos, matreiro:

"Mato e casebres, uma vez mais?

Em nosso país temos coisas iguais!

E enfada-me também todas essas gentes;

Os de nossa terra já não são suficientes?"

No fim, foi como se não tivesse viajado;

Em minha amiga nunca parei de pensar,

A ponto de poeta depois me tornar.

Constatei, então, com o coração pesado,

Que viajar amplifica a alegria,

Mas é ineficaz contra a melancolia.

V

Anos depois cheguei a outra conclusão,

Que a meu sistema vim a acrescentar;

Sonhar e escrever dá-me mais satisfação

Do que em longas viagens se lançar.

Não há ferramenta mais eficiente

(E também barata) do que nossa mente,

Que nos leva a qualquer lugar do mundo

Sem nada cobrar em menos de um segundo,

E sem que ao menos nos desloquemos.

Mas se meus cantos caírem em tuas mãos um dia

(O que duvido que aconteceria),

Em vão, C..., ainda espero que nos reencontremos,

Seja em minha terra ou noutras mais distantes,

E que retornemos ao que éramos antes.

VI

(Porém, digo-lhes com toda a sinceridade:

Se por algum milagre este livro vender,

Assim que surgir-me a oportunidade,

No Leste Europeu haverei de viver.

Onde uns enxergam desolada aspereza,

Eu próprio percebo a mais régia beleza

No topo da criação de Deus entronada.

Minh'alma sente-se extasiada

Quando põe-se a planar em devaneio

Por sobre os campos d'alva neve, imaculados,

Pela mão da humanidade quase intocados,

Envolta no mais doce e lânguido enleio.

É nesta gélida e quieta solidão

Que encontra paz meu símile coração.)

VII

Um relato de minhas viagens farei

Quando encontrar tempo (e também inspiração);

Mas sobre C..., por ora, me calarei –

Para não ferir ainda mais meu coração.

Ao meu Alceste passa da hora de eu voltar,

Pois vejo que pôs-se ele também a viajar!

Obstinado vejo-o caminhando;

Das plagas lituanas está se aproximando.

Sugiro, então, que o acompanhemos!

Mas pergunta um leitor: "Por que seu país deixou,

E como noutra terra Alceste chegou?".

Pois bem: um pouco no tempo voltaremos,

Antes de Alceste ter em sua excursão partido,

E assim tudo vos lhe será esclarecido.

VIII

Passado seu luto Alceste não suportava

Em sua terra trabalhar e viver;

A todo momento se torturava

Lembrando de todos que lá viu morrer.

Mas por ser resiliente e engenhoso,

Concebeu ele um plano maravilhoso

Que o útil ao necessário uniria

E de sua tristeza o tiraria:

"Se esta ordem que encabeço deve pregar

Nosso 'Evangelho' aos quatro cantos do mundo,

É hora de levar esta etapa a fundo;

Sairei pelo continente a peregrinar,

Pois nesta terra o que queria consegui;

Não há mais nada para eu fazer aqui."

IX

Numa mala livros e frascos colocou,

E também ervas para preparar poções.

Uma vez mais o túmulo do velho fitou

E ajoelhou-se para fazer-lhe orações:

"Tentei afastar de minhas ideias este dia,

Mas com força voltava, sempre que o repelia.

Com tantas pessoas o fado me escolheu

Para tornar-me o ator dum louco drama seu,

E minhas funções chama-me a desempenhar.

Parto, sem saber o que encontrarei,

Mas se achar algo interessante voltarei,

Meu único amigo, para lhe relatar."

Tendo isto dito, ao horizonte foi andando,

Sua pátria, sem olhar para trás, deixando.

X

Pelo continente todo se alastrava

Um boato de uma figura misteriosa –

Em todos os lugares que aportava

Causava especulações e polvorosa.

Surgia num país quando bem entendia

E como efeméride igualmente sumia,

Praticando nobres atos de bondade

E realizando entre os pobres caridade.

Uns diziam que era um santo reencarnado,

Um excêntrico mago vindo do Oriente

Ou até mesmo um fugidio, folclórico ente.

Mas meu leitor, de intelecto mais aguçado,

Vê além destes rumores com clareza

E sabe que era Alceste, com toda a certeza!

XI

Graças ao poder místico e fabuloso

Que seu caro anel lhe proporcionava,

Comunicar-se não lhe era trabalhoso

Pois todas as línguas na mente lhe inculcava

(Explicação que, espero, seja convincente

Ao leitor mais inquisitivo e exigente –

Se não for, meu amigo, queira perdoar,

Mas ideia melhor poderia me dar?).

Mas longe de sentir-se realizado

Com tal poder e as viagens que fazia,

Alceste a todo momento sentia

O coração vazio e de ânimo privado –

Como se algo crucial lhe faltasse

E não o achava por mais que procurasse.

XII

Sempre que encontrava-se a sós, refletia:

"Desde que pus-me errante a vagar

Por terras tão distintas, dia após dia,

Nunca tive o prazer de encontrar

Alguém que pudesse chamar de amigo

E tomasse meu fardo junto comigo.

Sozinho como nunca tenho me sentido;

É como se nunca tivesse partido.

De que adianta todo este poder

Se não tenho um discípulo a instruir

E que possa com colóquios me divertir

Quando o desalento sobre mim se abater?

Até mesmo se achasse outro velho esquisito

Meu coração ficaria menos contrito."

XIII

E assim, Alceste, dia após dia,

Seguia nesta infinda peregrinação,

Tendo como única companhia

O pesar e sua silente solidão.

Mas eis que, por um acaso da sorte,

Voltou sua atenção às terras do norte –

"Talvez nestas terras de frio glacial

Encontre para meu coração um igual",

Com o mais amargo dos sorrisos pensou.

Acabado agora este esclarecimento,

Com sua permissão, voltemos ao momento

Em que meu herói à Lituânia chegou.

Na hora, mal podia ele imaginar

A aventura que lá ia vivenciar.

XIV

Alceste caminhara havia dias;

O frio fustigava-o sem compaixão.

Sua bolsa – e a barriga – estavam vazias,

E tudo daria por uma refeição.

A única coisa em que pensava

Enquanto por altos pinheiros se embrenhava

Era em quando chegaria a algum lugar

Onde poderia comer e repousar:

"Poderia devorar este pinheiral

E ainda assim não ficaria satisfeito

De tão faminto que estou. Com efeito,

Digo também que não seria nada mau

Tragá-los com esta neve enregelante

À guisa duma xícara de chá fumegante."

XV

Seus pensamentos foram interrompidos

Quando um barulho peculiar escutou;

Seguindo a fonte daqueles estalidos,

Com o que viu em seguida se espantou:

Era uma cegonha, altiva, lindíssima,

De plumagem tal qual a neve alvíssima.

Deslumbrado, Alceste a encarava

E a ave, impassível, de volta o fitava

Quase como se nosso herói reconhecesse.

"Este pássaro deixa-me muito intrigado",

Conjeturou Alceste, ficando assustado.

"Por que me encara como se soubesse

De algo que interessante possa-me ser,

E com certa urgência quer-mo dizer?

XVI

"Se parar para pensar, nem é natural

Que uma cegonha esteja presente

Em tal paisagem gelada e invernal;

Mas, oras! Há uma bem na minha frente.

Talvez seria uma alucinação

Causada pela minha indisposição

Devido a esta excruciante fome

Que meu estômago por completo consome...!

Se é ou não um sonho vou averiguar:

Matar animais deixa-me enojado,

Mas o caso é urgente e estou desesperado –

Se este pássaro quer realmente falar,

Que tente de algum modo me convencer

A não capturá-lo para o comer."

XVII

Como se houvesse lido tal pensamento,

A ave mostrou-se ainda mais peculiar:

Por algum milagre ocorrido no momento,

Ela realmente pôs-se a falar!

No que ouvia Alceste mal acreditava,

E julgou que, de fato, alucinava.

Com uma voz bondosa, mas altiva e potente,

Falou-lhe o pássaro, parecendo contente:

"Labas! Já esperava a sua chegada.

Que eu lhe dê boas-vindas me permita

À Lituânia – terra mais rica e bonita

Que esta não há. Aproveite sua estada

Aqui, onde desde tempos imemoriais

Grandes feitos se gravam em nossos anais."

XVIII

Já que estava realmente a delirar,

Alceste achou que não faria nenhum mal

Com a cegonha uma conversa tentar,

Então falou-lha de modo até natural:

"Oh, meu caro! Sou-lhe agradecido;

Chego até a ficar entristecido

Porque, por mais que queria ser teu amigo

E conversar agradavelmente contigo,

Um pássaro ainda continuas a ser:

Sinto muito, mas preciso mesmo matá-lo

E em seguida prontamente devorá-lo

Porque estou há tempos sem comer.

Prometo que farei com que seja indolor –

Mas pode um mero delírio sentir dor?"

XIX

Respondeu a ave, dele se aproximando

E dando uma alegre gargalhada:

"Alceste, Alceste! Não estás delirando,

E saibas que minha intenção é honrada."

"Bem, posso aceitar isso e tudo mais,

Mas já esta para mim é demais:

Não basta apenas saber falar,

Mas meu nome agora acabou de mencionar!

Me responda afinal: quem – ou o que – é você?",

Alceste, de frio, medo e fome encolhido

Perguntou, crendo ter a sanidade perdido.

"Bom, já que queres tanto me conhecer,

É melhor que eu lhe diga logo a verdade:

Vou revelar-te minha identidade."

XX

O máximo que pôde as asas abriu,

E uma nuvem de luz cegante engolfou

A ave. Quando, por fim, dela saiu,

Algo totalmente distinto se tornou.

Nunca, nem em seus sonhos mais delirantes,

Alceste vira algo como aquilo antes:

Um homem de altíssima estatura

E muito desenvolvida musculatura

Usando uma toga alva e resplandecente.

Mas a coisa menos esquisita era essa,

Constatou Alceste ao reparar na cabeça

Do gigante – era, no mínimo, diferente:

À cabeça dum cão se assemelhava,

E um halo grandioso e brilhante a circundava.

XXI

"Šventasis Kristoforas me chamo,

E sou o perpétuo protetor

Desta terra tão linda que tanto amo,

Graças à bondade de Nosso Senhor.

Posto-me aqui para receber

Qualquer viajante que aparecer

Carregando dentro dos seus corações

Paz de espírito e boas intenções.

Já aquele que vem como inimigo,

Com o mero intuito de fazer maldade

E criar com o povo daqui hostilidade,

Depois haverá de se ver comigo:

Por cada um de seus atos será castigado,

E será até morrer amaldiçoado."

XXII

"Cada vez mais nada disso está ajudando

A de uma ou outra forma me convencer

Que estou ou não afinal delirando,

Mas dessa discussão irei me abster

Porque existem, neste exato momento,

Coisas mais importantes em meu pensamento,

Como, por exemplo: de andar estou cansado!",

Respondeu Alceste ao santo, exasperado.

"Se a algum lugar habitado não chegar

Onde possa encontrar um leito confortável,

Comida e abrigo desse frio insuportável,

Receio realmente ter que o devorar:

Seja em forma de cegonha ou não,

Meu estômago já não faz mais distinção."

XXIII

"Pela língua comprida posso perceber

Que não esperei pela pessoa errada.

Felizmente a ti posso lhe dizer

Que estás seguindo em direção acertada.

Mais adiante o Neris irás encontrar

(Outro rio em beleza nunca o igualará),

E se seguires a direção de seu curso,

Encontrarás ao final do percurso

Vilnius, nossa orgulhosa capital –

Uma alegre e aconchegante cidade,

Borbulhando de gente e atividade.

Lá acharás o que deseja afinal,

E esquecerás o intuito de comer um santo;

Vosso estômago para tal não é tanto."

XXIV

Tendo isto dito, o santo voltou

À sua forma de ave original.

Em silêncio os olhos de Alceste fitou

E falou-lhe de novo afinal:

"Pois bem! Agora já devo partir,

Mas antes preciso o advertir –

Para dar-te estes conselhos o esperei,

E sem mais delongas agora os direi.

Primeiro: tenha muita perseverança,

Pois aqui pressinto que encontrará

Muito mais do que aquilo que esteve a buscar.

Deposito em ti minha confiança

De que vais te valer de tua sapiência

E ainda mais de toda a tua paciência.

XXV

"Segundo: enquanto andar por estas paragens,

De nossos costumes estejas ciente!

E antes que faça quaisquer bobagens,

Ao seguinte fato, por favor, te atente:

Cegonhas aqui são o nosso tesouro!

Encontrar uma é sinal de bom agouro

(Por isso julguei correto aparecer

Nesta forma de ave para o ver);

Portanto, Alceste, faça o que faça,

Nunca tente a uma cegonha maltratar

Ou verter seu sangue para se saciar,

Se não quiser que lhe recaia a desgraça!

Terás o ódio de todos deste país,

E enquanto cá estiver serás muito infeliz.

XXVI

"Disse-lhe tudo o que precisava saber;

Agora deves continuar tua jornada,

Mas futuramente iremos nos rever –

Até lá, que a sorte o acompanhe na estrada!

Viso gero!", por fim o santo-ave falou,

E para algum outro lugar voou,

Sobrevoando os majestosos pinheirais

Até que Alceste não pôde enxergá-lo mais.

"Bom, tal encontro foi bastante salutar,

Mas para diminuir minha aflição

Bem que aquele enorme santarrão

Poderia alguma comida me ofertar!

Seus conselhos foram-me bem úteis, não minto,

Mas não enchem barriga e sigo faminto."

XXVII

Seguindo sempre na mesma direção

Pela qual até então caminhara,

Finalmente sentiu alegre o coração

Quando notou que água corrente escutara:

Era o rio Neris, com toda a certeza!

Alceste deslumbrou-se com a beleza

Daquelas águas límpidas como cristal,

Que somadas à alva paisagem invernal

Formavam um quadro de pureza imaculada.

"O santo realmente não estava se gabando,

Mas acho melhor eu ir me apressando

Pois pouco falta para o fim da caminhada!",

Disse Alceste, depois de contemplar o rio,

E em sua cansativa jornada prosseguiu.

XXVIII

Passados alguns minutos viu adiante

Um indício da esperada civilização:

A Torre de Gediminas se erguia, pujante –

Magnífico e antiquíssimo bastião

Da longínqua e opulenta era medieval,

Resistindo desde então como um sinal

De uma duradoura e viva memória

Que saúda todos os povos com a história

De cavaleiros e grão-duques valorosos

Que presenciou naqueles campos pelejarem

E a neve de rubro com seu sangue pintarem,

E guarda com afinco os feitos famosos

De todos aqueles que por lá passaram,

E à Lituânia suas contribuições deixaram.

XXIX

Ao longe, belas casinhas de madeira

De aparência rústica, mas aconchegante,

Saudavam nosso herói em fileira

Motivando-o a seguir adiante.

"A civilização estou quase a alcançar!

Meu ânimo agora não pode me deixar!",

Disse Alceste, já finalmente sucumbindo

À fome e ao cansaço que o vinham consumindo.

Eis que dar mais um passo não aguentou:

Sentiu dor e sua cabeça rodopiando,

E ali mesmo, exaurido, acabou desmaiando.

A Torre de Gediminas de soslaio fitou,

E esta foi a última visão que teve

Antes de jazer semimorto em meio à neve.

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 15/02/2018
Reeditado em 15/02/2018
Código do texto: T6254495
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.