Alceste, o ocultista de Vilnius (Canto II)
"Every one may hold it out for certain that such persons as were sent, and joined together by God and the Heavens, and chosen out of the wisest of men, as have lived in many ages, did live together above all others in highest unity, greatest secrecy and most kindness one towards another."
(FAMA FRATERNITATIS ROSÆ CRUCIS)
I
Certo dia, pus-me a filosofar
(Faço muito isto, como puderam ver)
E um sistema acabei por inventar –
Gostaria que viessem a conhecer
Esta minha singular ponderação
Que haverá de render-me uma premiação
(Mas só depois de eu já estar morto e enterrado –
Não é, meus amigos, caprichoso o fado?):
Estipulei eu que há três coisas mui belas
Que à primeira vista parecem banais,
Mas que para mim são muito essenciais
À alegria do homem – quais seriam elas?
São o direito a bons comes e a um bom vinho,
E à noite poder tirar um bom soninho.
II
Dinheiro e saúde, com toda a certeza,
Não deixam de ter sua obrigatoriedade;
Inteligência, bons amigos e beleza
Também não são nada maus, em verdade
(E desejo, de coração, meus parabéns
Ao leitor meu que tiver todos estes bens).
Mas acredito eu que isso nada adianta
Se não podes ter bom almoço ou boa janta
Quando a fome em tua barriga se instalar.
No mundo há muita gente desfavorecida
Que não consegue obter qualquer comida;
Tendo isto em mente, saiba apreciar
A hora em que comida lhe for ofertada –
Ainda mais se com carinho foi preparada.
(NOTA: Mas tomai o máximo de cuidado
Para não comer muito excessivamente;
Também não te esqueças de, anteriormente,
Checar se seu alimento está estragado.
Não quero que tu, leitor meu, fiques doente –
Sejas tu precavido e moderado
Para que com saúde sejas agraciado
E vivas até a velhice, alegremente.)
III
Seja entre amigos ou sozinho,
Não existe coisa mais prazerosa
Que degustar uma boa taça de vinho –
Transbordando de cheia e saborosa!
Não gosto de nenhuma outra bebida;
Vinho sempre foi a minha preferida.
Se acham que estou a exagerar,
Queiram comigo um pouco raciocinar.
Baco outrora ostentou sua coroa, orgulhoso,
Até que com que o Cristo o invejasse
E seu sangue todo em vinho transformasse
Só para destronar o ébrio pagão guloso!
Ergo, é digna de por mim ser apreciada
Beberagem que por deuses foi disputada.
IV
E finalmente falo do maior tesouro
Que à humanidade pôde ser concedido.
Seu valor é tal, que por prata ou ouro
Não pode ser comprado ou vendido:
É o direito de deitar e dormir
E à terra dos sonhos podermos ir.
Deus, que (quase) sempre é todo bondade,
À noite apieda-se de nossa adversidade
E Dele uma pequena morte recebemos.
A morte maior é só um sonho infinito
(Quadro tão simplista, nem chega a ser bonito),
Mas como tolos todos tal sonho tememos!
(Isto, ao menos, é o que gosto de acreditar;
Nunca morri, então não posso bem explicar.)
V
Mas acho que meu herói dormiu o bastante,
E posso parar com a enrolação
A fim de voltar ao que é mais importante
E narrar de sua história a continuação.
Meu monólogo poderia ter pulado
E diretamente ter recomeçado,
Mas ninguém gosta de ser aborrecido
Enquanto serenamente está adormecido.
Sintam-se privilegiados, porém, leitores;
Os amo, por isso ponho-me a falar
Imaginando-os comigo a divagar.
Existem por aí muitos outros autores
Que não se interessam por quem os lê:
Só querem o vosso dinheiro obter.
VI
Mais uma vez o meu voto reitero
De que nunca lhes falte repouso e alimento,
E dou-lhes agradecimento mui sincero
Por ficarem comigo até este momento.
Ainda sou poeta inexperiente
Mas com vosso apreço estou bem contente;
Se algum dia eu entrar para a história,
Os guardarei com carinho em minha memória.
Estou bem longe, entrementes, da conclusão!
Tenho ainda muito trabalho a fazer,
Mas de novo, garanto, iremos nos ver.
Já chega, portanto, de enrolação!
Queiram, por favor, muita atenção me dar,
Pois o canto segundo irá começar.
VII
Como é de praxe, raiou mais um dia;
Ergueu-se o disco do Sol, resplandecendo,
Saudando os pássaros com alegria,
Que por sua vez cantam o agradecendo.
Pouco a pouco a forte luz solar
Substitui o pálido espectro lunar,
E todas as alamedas da cidade
Começam a encher-se de atividade –
Comerciantes suas lojas vão abrindo,
Presenciando as crescentes aglomerações
Se espalhando em diferentes direções
A seus respectivos trabalhos seguindo,
Felizes por ter mais um dia de vida
Comum e rotineira a ser vivida.
VIII
Longe, porém, de toda essa comoção,
Num campo perdido no meio do nada,
Acordou depois de uma noite no chão
Sob o teto duma capela arruinada,
Meu herói, pela sociedade desdenhado
(Portanto, digno de por mim ser cantado);
Ao seu derredor todo ele tateou,
Para se certificar que não sonhou
Com o estranho encontro do dia anterior.
"Foi tudo verdade", pôde constatar,
Mas viu que não conseguia encontrar
Em lugar nenhum aquele velho senhor
Responsável por toda essa loucura,
E então saiu à sua procura.
IX
Circundando o que um dia foi o altar,
Uma descoberta o pegou de supetão;
Quase caiu depois de tropeçar
No que aparentava ser um alçapão!
A qualquer coisa já havia se habituado,
Então não ficou lá muito espantado.
"Não estranharia se um monstro escapasse
Daí de dentro, e todo me devorasse",
Pensou com um sorrisinho divertido.
Eis, porém, que um ruído escutou
E logo após a porta se escancarou,
Produzindo um sonoro estampido!
E Alceste, transido de pavor, viu
A figura sombria que de lá emergiu.
X
Mas acalme-se, ó meu leitor querido!
Antes que jogue o meu livro fora
E gritando de terror fuja espavorido,
Peço-lhe, por favor: não vá embora!
Por um monstro Alceste não foi devorado –
Só foi com um certo mau jeito saudado
Por aquele que tornou-se seu protetor.
"Não cria eu que matar-me de pavor
Seria parte de minha iniciação",
Disse Alceste, com um tom de voz azedo,
Após seu sarcasmo subjugar o medo.
Mas como ainda tinha um pouco de educação,
Deu a mão ao velho para que subisse
E daquela misteriosa porta saísse.
XI
"Não quis lhe saudar assim tão atrasado",
Disse o velho com sua humilde polidez.
"A madrugada toda fiquei acordado
Estudando minhas artes, como bem vês,
E – qual foi meu espanto! – nem percebi
Que sentado na cadeira adormeci!
Não adianta: por mais que eu a negue,
A inevitável velhice me persegue.
Mas para compensar o tempo perdido
(Já que cometi esta descortesia
De não lhe dar um apropriado 'bom dia'),
Este impasse logo será resolvido:
Um bom café da manhã nos trarei
E tudo que tenho a dizer-te, direi."
XII
Alceste, de fato, muita fome sentia;
Ouviu até mesmo seu estômago roncar.
Suas piadas para outra ocasião guardaria –
Mais importante agora era se alimentar.
O velho saiu pela porta da frente,
Deixando Alceste sozinho novamente.
Voltou alegre alguns minutos depois,
Carregando algumas frutas para os dois
E uma garrafa d'água fresca e deliciosa:
"O maior voto de nossa organização
É o de sempre zelar pela moderação –
Esta ceia é simples, mas muito gostosa
E saudável ao corpo. Portanto, vamos!
É imprescindível que agora comamos."
XIII
"Nossa ordem desde muito mantém guardados",
Dizia o velho durante o frugal desjejum,
"Os segredos de ofícios desdenhados
Pelo vulgo inculto – um por um:
De tônicos curativos à alquimia,
Passando até pela necromancia,
Com todas elas (e mais!) operamos,
E quem necessita nós ajudamos –
Nossa única função é espalhar o bem
Neste nosso mundo cruel e confuso
De intelecto mortiço e obtuso;
E como fiz convosco, amigo, também
Selecionamos quem é digno o suficiente
Para professar nosso credo com a gente.
XIV
"Humildes como Cristo Nosso Senhor,
Muito pouco, ou nada, por tudo cobramos;
Faça Sol ou chuva, seja onde for,
Como Seus apóstolos a esmo vagamos
Nesta nossa hercúlea mas nobre cruzada
Com escárnio muitas vezes recepcionada –
Mas no fim receberemos o galardão
De encaminhar almas à salvação,
Novamente como o Cristo; crucificado,
Envolto em glórias ressuscitou –
Tal como você da morte se salvou,
Amigo e futuro pupilo estimado!
Há muita coisa que irei lhe ensinar,
E para a vida toda irás tudo guardar."
XV
"Confesso que tudo isto é muito bonito",
Disse Alceste, depois da explanação,
"Mas este anel em teu dedo, todo catito,
Não combina com teus votos de abnegação!
De prata é feito e com rubis é adornado;
Realmente, não é nada apropriado
A alguém que prega pobreza e humildade.
Em minha opinião, farias mais bondade
Se numa loja de penhores o vendesse –
Parece, a meu ver, muito valioso,
Qualquer comprador ficaria invejoso.
Com o dinheiro que disso então obtivesse,
Para algum convento ou hospital vá doá-lo;
Aí sim é que Deus ira congratulá-lo."
XVI
"Não uso este anel por mera vaidade",
Replicou o velho num tom cauteloso,
"Mas um de teus pontos é todo verdade:
Ele realmente é muito valioso,
Não apenas por um valor monetário,
Mas por ser desta ordem artigo sumário.
Por nosso fundador há séculos foi moldado
E por ele até sua morte usado,
Passando de geração a geração
Ao próximo mestre digno de o portar
E seus místicos arcanos controlar.
Agora, como vês, está na minha mão,
E já viste uma amostra de seu poder.
Muito mais sobre ele vais aprender."
XVII
Àquela altura Alceste se acostumara
Com todas aquelas esquisitices
Que por toda a sua vida considerara
Serem contos de fadas ou invencionices.
Enquanto escutava o velho falando,
Sua mente com vagar ia formulando
Planos e mais planos mirabolantes
Para voltar a ser como era antes:
"Ao que indica, este velho não é um falastrão;
Quando fala vejo que está sempre sério
E está disposto a me ensinar o mistério
Desta assim chamada 'organização';
Se tudo o que ele sabe eu aprender,
Imagine só o que poderei eu fazer!
XVIII
"Serei aclamado como um semideus
Por toda a escória desta cidade,
E os mais insignificantes desejos meus
Serão cumpridos como roga minha vontade.
Não mais haverei eu de ser rechaçado
E por mais ninguém serei pois caçoado;
Toda a minha fúria irei descontar
Em quem lançou minha inocência ao ar
Como um pássaro alquebrado e moribundo
Que mal pôde voar e se estatelou,
E é assim que prazerosamente vou
Vingar-me de tudo e de todos no mundo!"
E após chegar ao fim deste juízo,
Encerrou suas ideias com um sorriso.
XIX
"E afinal quando irás me introduzir
A estas maravilhas?", Alceste indagou.
"Agora que comemos, pode me seguir",
Disse o velho, e então se levantou.
Ao alçapão do qual saíra se dirigiu,
E uma vez mais sua porta abriu,
Descendo de novo a escadaria
Que sabe-se lá onde é que daria.
"Talvez vá parar no fundo do Inferno",
Pensou Alceste, a mente formigando.
"E este velho é o diabo me incentivando
A assinar um pacto com o fogo eterno!
Pois que seja bem-vindo à minha empreitada;
Pode até ser que a deixe mais animada."
XX
Chegando ao fim de toda aquela descida,
Por um corredor longo ainda caminharam,
E com uma imensa porta esculpida
Com caracteres estranhos se depararam.
Sem mais delonga, o velho a abriu,
E chocado como nunca Alceste viu
Um gabinete de estudos bem espaçoso;
Não muito bonito, mas bem suntuoso.
De livros as paredes estavam atulhadas;
Alguns novos, e outros já bem mofados,
E muitos no chão estavam espalhados.
Frascos, e garrafas desordenadas,
Ocupavam uma mesa mais adiante,
Todos cheios de um líquido borbulhante.
XXI
"Este pequeno quarto, dizendo a verdade",
Disse o velho, quase que acanhado,
"Não chega a conter nem mais que a metade
Do acervo outrora tão afamado
Daquele que foi o nosso fundador.
Independente disto, seja como for,
Todos os materiais aqui contidos
Estão sempre ao vosso dispor servidos.
Cada um deles haverás de manipular
(Sempre, é claro, com o meu auxílio),
E quando chegar a hora, ó meu filho,
Membro oficial desta ordem tornar-se-á.
Isto o faço com muitíssimo gosto;
Espero que continue a isto disposto."
XXII
E já que até àquele ponto chegara,
É claro que Alceste disposto se mostrou.
Sua nova vida com gosto aceitara
E nas artes ocultas se iniciou.
Sobre sua iniciação não irei delongar,
Para os segredos da ordem não espalhar
A alguns infelizes cujos corações
Estão cheios apenas de más intenções,
Mas uma coisa posso eu lhes dizer:
Dos alunos Alceste mostrou-se o melhor,
Ultrapassando até o seu professor,
E tudo o que tinha que aprender
O fez com habilidade (e até paciência),
Mas sem tirar seus planos da consciência.
XXIII
E foi assim que ao cabo de um ano
Alceste tornou-se sagaz ocultista,
Mas a Providência, astuta, tinha um plano
Para tirar a vingança de sua vista:
Saindo com o velho, curando doentes,
Sempre no meio das mais miseráveis gentes,
Um pouco daquela juvenil compaixão
Retornara ao seu rígido coração,
E enquanto a vaidade de todo não perdera,
Pelo menos aos outros não a demonstrava
Enquanto seus serviços a eles prestava.
Sua língua igualmente não esmaecera –
Da sociedade ainda dava boas risadas,
E com quase tudo, a sós, fazia piadas.
XXIV
Ao invés de carregar a vingança odiosa
Que o consumia a cada momento,
Alceste pensou em forma mais honrosa
De carregar o seu antigo intento;
Quanto mais pessoas ele ajudava,
Do fundo do seu coração esperava
Que suas vidas um dia melhorariam
E quando pudessem ocupariam
De todos os corruptos a posição.
"É um plano menos criminoso em moral
E ao mesmo tempo, divertido, afinal",
Ponderava Alceste após cada ação,
E pensando em quando isto presenciaria,
Jurou que a seu pai não se rebaixaria.
XXV
Certo dia, como é de praxe acontecer
A todos nós em nossa terrena jornada,
O velho sentiu que iria morrer;
Sua saúde ficara bem debilitada,
E a Alceste já não acompanhava
(Se bem que do velho há muito não precisava).
Cada vez mais perto da hora crucial
De abandonar seu invólucro mortal
E alçar a alma rumo ao desconhecido,
No átrio da capela, deitado no chão,
Chamou Alceste e segurou sua mão.
Com um tom de voz baixo e enternecido,
Falou (pelo que seria a vez derradeira)
Ao seu jovem discípulo desta maneira:
XXVI
"Dediquei-me por minha vida inteira
Desde que nesta ordem fui um dos admitidos
A seguir fielmente e de toda maneira
Os princípios que a mim foram incutidos.
E sempre foi com muito zelo e alegria
Que estas obrigações toda cumpria,
E muitas pessoas tive a honra de ensinar
Sem nunca cansar-me disto, ou fraquejar.
Tu, que de um estranho passou-me a amigo,
Foi o último pupilo a quem ensinei,
E de todos foi o do qual mais me orgulhei.
Na hora de minha morte fique comigo,
Pois ainda lhe tenho algumas instruções
E para seu futuro certas admoestações.
XXVII
"Sempre o vi com zelo a tudo se dedicar,
Mas pude sentir que em teu coração
Tentas um certo ódio do mundo ocultar
Que pode ainda levar-te à perdição.
Em teu âmago não cessas de remoer
Tudo o que viu lhe acontecer,
E muitas vezes em vingança pensou
E planos gananciosos formulou.
Jamais se rebaixe à perversidade
Daqueles que descontam o próprio sofrimento
Nos pobres inocentes a todo momento!
Lembre-se sempre que se oculta bondade
No mundo: trate os maus com aspereza,
Mas aos bons nunca negue a menor gentileza.
XXVIII
"Como és meu único sucessor,
A regra estipula que deves herdar
O anel de prata de nosso fundador
E meu lugar como mestre ocupar.
Que esta solene responsabilidade
Não o afaste do caminho da verdade,
E se lembre de sempre usá-la para o bem,
Tal como o fiz convosco também.
Sempre que necessitares de socorro
Faça com sinceridade uma oração
E ele o encaminhará à razão.
Mas, oh! Chega a hora! Finalmente morro!
Deixo, por ora, minha tênue vida
Satisfeito e com minha missão cumprida."
XXIX
Tendo suas últimas palavras proferido,
O velho cerrou os olhos e calou-se.
Ao cabo de um minuto, exaurido,
Aos cuidados da morte, lesto, entregou-se.
Colocando o precioso anel na própria mão,
Alceste não deixou de sentir o coração
Contrair-se com o mais sincero pesar;
Aprendera daquele velho a gostar,
E grato a ele para sempre seria
Por ter-lhe uma nova vida mostrado,
E coisas que antes nem havia imaginado.
Mais tarde naquele fatídico dia,
Alceste, o melhor que pôde, o enterrou,
E sozinho mais uma vez se encontrou.
XXX
E por ora também eu o deixarei,
Para que seu luto em paz possa chorar.
Após as condolências continuarei
Sua estranha aventura a narrar.
Mas antes que de vós venha a me despedir,
Convido-os outra vez a refletir:
Os anais da História muitas vezes mostraram
Casos de pobres-diabos que se transformaram.
Homens em asnos já vi metamorfoseados,
Quem tornou-se porco também encontrei,
E até um pobre bobo aclamado rei;
Então, meus leitores, não fiquem chocados
Lendo sobre alguém que, nascido no luxo,
Sem hesitar largou-o para virar bruxo!