Alceste, o ocultista de Vilnius (Canto I)
"Ihr naht euch wieder, schwankende Gestalten!
Die früh sich einst dem trüben Blick gezeigt.
Versuch’ ich wohl euch diesmal fest zu halten?
Fühl’ ich mein Herz noch jenem Wahn geneigt?
Ihr drängt euch zu! nun gut, so mögt ihr walten,
Wie ihr aus Dunst und Nebel um mich steigt;
Mein Busen fühlt sich jugendlich erschüttert
Vom Zauberhauch der euren Zug umwittert."
(Goethe, FAUSTO)
I
Quando ergue-se a Lua alto no céu,
E na cidade estão todos repousando,
Em meu quarto estou acordado, ao léu,
Pensamentos por minha mente desfilando
Às miríades, não me deixando dormir.
Sendo assim, sou obrigado a anuir
Aos seus clamores, sempre incessantes.
Gritam eles com vozes tonitruantes:
"Quando comporá conosco uma história?
Cansamos de estar por aí a vagar
Como almas perdidas, sempre a buscar
Refúgio nos báratros de tua memória!".
Eis que, enfastiado, a tais vozes dou basta,
E busco minha pena, já bastante gasta.
II
Tal é minha sina! Mas estou habituado:
Todos sabem hoje em dia que ser poeta
É trabalho duro (e bem mal-remunerado) –
Informação nem um pouquinho secreta.
O cérebro com quimeras enfadamos,
A cantar canções o dia todo passamos,
Esperando que alguém com sensibilidade
Dê-nos uma pequeníssima bondade:
Um trocado para que compremos o pão,
Uma linda coroa verde de louros,
Entre outros carinhosos, úteis tesouros;
Porém, só conseguimos a rejeição
Da crítica empolada e artificial
E da sociedade oca e banal.
III
Mas não me arrependo deste caminho;
Afinal de livre vontade o escolhi,
Por mais que, às vezes, me sinta sozinho
Já que não tenho amigos para me seguir.
É o que chamam de noblesse oblige;
Ossos que o ofício de nós exige.
Se dissesse querer um viés diferente,
Estaria mentindo a toda a gente
Que lê meu conto neste exato momento.
Dante, Camões, Bocage, Cervantes
Passaram a vida rotos, mendicantes
Mas depois veio o triunfal reconhecimento.
Talvez um dia como eles eu serei:
Ao que o fado reserva-me, esperarei.
IV
Não que eu me importe grandemente com glórias;
Afinal, a mim não me interessam riquezas.
Só quero poder contar as minhas histórias
E encher este mundo insípido com belezas.
(Se bem que não nego um bom dinheirinho
Para comprar uma garrafa de vinho.
Costumo ficar muito entediado
Se não tenho uma garrafa ao meu lado.)
Ó meus leitores! Posso eu lhes pedir
Algo que seja bastante agradável
E ao meu paladar ainda mais deleitável?
Se meu conto fizer algum de vós sorrir
(E se assim for de vosso dileto apreço)
Me deem uma garrafa de vinho – eu mereço!
V
"Ora, seu espertalhão! Deixe de lérias!",
Deve ser o que vós deveis estar pensando.
"Estás aí se gabando, dizendo pilhérias,
Mas conto que é bom nenhum estás traçando!
Se quer tanto assim que teu prêmio te demos,
Dê-nos o tal conto, que assim o queremos!".
E em minha cabeça, as vozes recomeçam –
Gritando bem alto, elas nunca cessam:
"Comece! Ande logo! Você prometeu!
De nos dar uma história fez uma promessa,
E nada facilmente se safará dessa!".
Ora, lembrem-se que bem sozinho sou eu,
E se encontro alguém com quem conversar,
Por horas e horas posso tagarelar.
VI
E a vós queria muito eu conhecer,
Quem sabe em seu meio até achar um amigo
Que muito leal poder-me-ia ser
E que riria e choraria comigo.
Mas deixarei isto para uma outra hora:
Devo seguir à história, sem demora,
Pois já realizei muitas divagações
E já devem enfadar-se destes serões.
Só mais esta estrofe concluirei,
Pois todo conto tem suas preliminares
Sem as quais o argumento iria pelos ares.
Sem mais delongas, então saciarei
À vossa impaciência, ó meus leitores,
E às vozes em meu crânio, que falam horrores.
VII
Meu conto se passa há muito tempo atrás,
Tal como quase todo conto de valor.
"Há quanto tempo exatamente, rapaz?",
Pergunta-me o sempre afoito leitor.
Pois respondo: aconteceu tão antigamente
Que a magia era então ainda existente –
Não fora reprimida pelo racionalismo
Frio de nossa era, e pelo charlatanismo
Não havia ainda sido desacreditada.
Das artes ocultas haviam praticantes
Que, como ermitões ou andarilhos errantes,
Realizavam suas artes sem cobrar quase nada:
Fabricavam salutares unguentos e poções
E às vezes até realizavam conjurações.
VIII
O tempo de minha história contei,
Mas falta outra importante informação:
Em nenhum momento lhes expliquei
Onde se passa toda a situação!
E antes que venham me interromper
Novamente, de bom grado vou-lhes dizer:
Quando sinto-me blasé, muito sonho eu
Com as terras distantes do Leste Europeu;
Palácios de grão-duques, voivodes, tsares,
Os invernos cortantes, enregelados,
Que deixam sob a neve todos sepultados;
Terras de tradições valorosas, milenares
Que falam docemente ao meu coração
E sempre me encheram de inspiração.
IX
Mas é na belíssima Lituânia
Onde tudo se passará exatamente.
Terra muito singular e estranha
Que não é conhecida por muita gente,
Mas lhes garanto que é um lugar encantado
E de belezas mil é ornamentado.
Sobre ela Mickiewicz já cantou
E de todo o coração a elogiou –
Se ele pode, pois também posso eu,
Apesar de meu talento não se igualar
Ao de tal nobre figura, mas vou tentar;
Farei o possível para que o poema meu
Seja por todos avidamente lido
E (quem sabe?) pelos lituanos conhecido.
X
Por mais que seja irônico, o respeito,
Se antes viesse duma terra estrangeira
Que de meus conterrâneos, o aceito –
Comigo não seria a vez primeira
Que por meus compatriotas fui rejeitado
E à própria sorte fui abandonado.
Como odeio tanto esta terra minha!
Repleta de gente ignorante e mesquinha
Que não sabe valorizar os pensadores!
Se tivesse a chance, muito longe iria;
Para um país distante eu migraria
E lá talvez eu me curasse das dores.
Aqui não poderei ter nenhuma glória,
Tal como ocorreu com o herói de minha história.
XI
"Que herói é este? Dele não nos contou",
Ouço alguém em voz alta falar.
Oh! Mas o quão distraído eu sou!
Isso é o que dá em demasiado divagar!
Quase me esqueci do ponto mais vital:
Introduzir meu personagem principal!
Mas espero não ficarem decepcionados,
Pois não é ele um desses guerreiros cantados
Por poetas de maior renome que eu.
Não é valoroso, ou célebre, ou forte;
Mas apesar de tal funesta sorte
Não façam desfeita do caro herói meu,
Pois sua aventura não foi pequena
E asseguro-lhes que vai valer muito a pena.
XII
Não importa o lugar onde nasceu,
Pois isso à história não é relevante;
Mas em contrapartida o nome seu
É, sem sombra de dúvida, mui importante:
Alceste é como veio a ser chamado
No dia em que por seus pais foi gerado
E na igreja recebeu a água batismal.
Pais que eram muito afetuosos, por sinal,
E a seu filhinho não negavam regalias.
Foi num ambiente de amor e afeição
Que Alceste foi crescendo, sadio e loução,
Dando a seus familiares muitas alegrias.
Todos que o conheciam ficavam encantados
Com sua inteligência e modos delicados.
XIII
Porém, sempre chega aquela hora fatal
Quando a idílica infância abandonamos
E sendo a tal forçados, por bem ou por mal,
O mundo dos adultos adentramos.
Uma profissão temos que escolher
Para que no mundo possamos nos manter,
E do nosso Alceste, agora moço crescido,
O futuro havia sido decidido.
Por sua família foi chamado;
Seu pai, de porte viril e suntuoso,
Encarava Alceste com olhar carinhoso.
Sua mãe estava postada a seu lado,
Mulher muito bela, de traços gentis,
Da jeunesse não perdendo as graças feminis.
XIV
"Ó querido filho, estimado menino",
Disse-lhe o pai num tom de voz afetuoso.
"Parece que foi ontem que, tão pequenino,
Aninhava-se tu em meu colo amoroso!
Mas agora és moço, e deve se habituar –
Tua antiga puerícia tens que renegar
E tocar para frente o nosso legado.
Portanto, é a hora de ser educado
No mesmo caminho que eu segui
E também meu saudoso pai, teu avô,
E ainda antes dele o teu bisavô.
Sendo assim, à escola de leis há de ir
Para que te tornes um magistrado venerável
E viva uma vida correta e honorável."
XV
À época, era Alceste um idealista;
Em nada conseguia enxergar a maldade
Inerente, e só tinha um sonho em vista:
Lutar pela vitória da verdade
E do bem (lembro-me de quando eu era assim!
Os fados foram tão cruéis para mim...),
E pensava que, se com as leis operasse,
E o máximo de pessoas ajudasse,
Ficaria pavimentado na memória
De seu país como um reformador
Amigo do povo e seu auxiliador –
E haveria de trazer muita glória
À sua terra, e à família faria orgulhosa;
Não podia pensar em carreira mais honrosa.
XVI
Respondeu ele ao pai, muito animado:
"No ápice de minha pequenez
De criança, pensava em ser igualado
A ti, quando chegasse a minha vez
De me tornar um adulto crescido –
Meu tempo de infância já pode ter ido
Embora, mas não o foram a admiração
Que sinto por ti, meu pai, ou a afeição.
Portanto, se é este o teu desejo,
Haverei de segui-lo, sem objetar,
E como você haverei de me tornar."
E depois de dar um carinhoso beijo
Às faces da mãe, e também do pai,
Para seu quarto repousar ele vai.
XVII
Dias depois, Alceste foi matriculado
Em Direito – mas de seus anos de estudante
Não irei discorrer de modo detalhado,
Pois seria a vós deveras maçante
E ao enredo quase nada acrescentaria.
Pularei para quando, com muita honraria
(Já que era, dos alunos, um dos melhores;
Mas isto já adivinharam, não, meus leitores?),
Ostentou o diploma orgulhosamente
À família, que com ele muito festejou.
"Meu filho, a minha bênção eu lhe dou",
Disse o pai a Alceste, muito sorridente,
"Para que em sua profissão seja feliz
E faça fortuna, tal como eu fiz!".
XVIII
Por mais que eu quisesse seguir a contar
Que a vida de Alceste seguiu na ventura,
Sou forçado a dizer-lhes, com muito pesar,
Que nosso herói passou por sua primeira agrura.
Afinal, nem o mundo da ficção é perfeito:
Todos os heróis sofrem, de um ou outro jeito –
E o sofrimento, geralmente temporário,
Traz-nos um aprendizado necessário:
Na tristeza descobrimos nós o valor
Que tem nossa vida – depois que choramos
Alegrias vindouras melhor apreciamos.
Não pode haver felicidade sem dor –
Sem um, o outro não existiria.
O mundo é movido pela binomia.
XIX
O pai de Alceste estava já bem combalido,
Pois era de idade um bocado avançada,
E pela Morte, de repente, foi vencido,
Deixando toda a família desolada.
Nem uma semana ainda se passara
Desde que Alceste o diploma conquistara,
E este entristeceu-se por não poder mostrar
Ao pai o que haveria de se tornar;
Porém, como era crente em Deus,
De pronto as lágrimas enxugou
E do fundo do coração orou:
"Não questionarei os desígnios teus,
Ó Senhor, mas que entre os anjos
Meu pai por mim vele, com os arcanjos!".
XX
Alguns dias depois a mãe acompanhou
O pai em sua destinação mortal:
De um lance de escadas tropeçou,
Vindo a sofrer uma queda fatal
Que deu-lhe no crânio uma imensa fratura;
Mas não descreverei tal horrível pintura
Em todas as suas cores, tão vívidas,
Pois não quero deixar as senhoras lívidas
(Com as damas preocupo-me demasiado;
Estou sempre zelando por seu bem-estar
E gosto muito, às vezes, de as lisonjear –
Portanto, desculpem-me se as hei chocado,
Mas o destino é quase sempre cruel assim:
Culpem a ele, e não a mim).
XXI
E, assim, só no mundo, Alceste ficara –
Só tinha a fortuna como companheira.
Mas, como era maduro, bem a administrara,
E não passou por dificuldade financeira
Por bom tempo; e por isto ficou afamado.
Sempre que um vizinho o via, era elogiado:
"Ó Alceste, tão jovem e tão precavido!
Está seguindo um bom caminho, querido!".
E este, apesar de responder alegremente,
Não deixava de, às vezes, sentir-se sozinho
Pois sentia falta dos pais e seu carinho;
Mas eis que uma boa-nova, finalmente,
Animou nosso herói após tal desventura:
Conseguiu uma vaga na magistratura.
XXII
Não sei se haverão de concordar comigo,
Mas acho que há algo mais pesaroso
Que a morte dum parente, ou dum amigo,
E cujo impacto é ainda mais tenebroso:
É a morte de um sonho que edificamos –
Aquele que, quando jovens, cultivamos
No ápice de nossa ingenuidade,
Antes de conhecermos a perversidade
Desses seres proclamados "filhos de Deus",
Que cedo ou tarde irão menosprezá-los,
Polui-los e logo após esfacelá-los.
Já destruíram muitos dos sonhos meus,
E aposto que até contigo, ó meu leitor,
Isto já aconteceu; não sentiste então dor?
XXIII
Tudo bem que esta é minha opinião,
E se quiserem, podem dela discordar.
Mas de qualquer forma chamo-lhes atenção,
Pois foi o que com Alceste veio a se dar.
Quis o destino maltratar-lhe ainda mais:
Não contente de ter-lhe levado os pais,
Mostrou ao nosso herói que a magistratura
Era lugar ausente de intenção pura,
E que até o próprio pai era interesseiro –
Enriquecera secreta e ilicitamente.
(E se pensam que hoje em dia é diferente
E que não há quem roube e desvie dinheiro,
Dos tempos de Alceste para cá, tudo é igual:
Se duvidam, abram o primeiro jornal.)
XXIV
Depois de ter tudo aquilo em que cria
Metamorfoseado em pesadelo vil,
Alceste trancou-se em casa certo dia
E por muito tempo de lá não saiu.
Se saía, era por extrema necessidade,
Pois não conseguia encarar a sociedade.
É muito triste a um pobre sonhador
Ver aquilo em que cria virando vapor,
E as consequências geralmente são duradouras:
O coração de Alceste se endureceu –
"Será que o pobre moço endoideceu?",
Diziam as más-línguas faladoras
Que cientes estavam da situação
E não sabiam dar ao moço consolação.
XXV
E de tanto viver em constante marasmo,
Como se fosse algum merencório ermitão,
Um dia teve Alceste perturbador espasmo
E veio a tomar uma horrível decisão:
Como não aguentava viver mais um dia,
Jurou a si mesmo que se mataria.
"Não tenho ninguém que por mim chorará;
Que falta um esquecido como eu fará?" –
Tendo na mente este pensamento,
Deixou a casa em frenético afoite
Quando já passava da meia-noite.
No meio do caminho hesitou um momento
Para ver se mudava de ideia – sem efeito.
"Não vou desistir: meu plano já está feito."
XXVI
Chegou ele então aonde queria:
À ponte acima do rio da cidade.
De lá do topo se atiraria;
Depois de expirar em aquosa profundidade,
No outro dia seria achado pelas gentes
E enterrado junto aos indigentes.
Porém, felizmente, este não é o fim
(Não restaria história se fosse assim!):
Alceste para saltar se preparava
Quando de repente foi surpreendido
Ao ver outro rosto no rio refletido.
Surgiu ao seu lado e a água fitava
Como se visse algo interessante
Naquela superfície clara e cintilante.
XXVII
Era um velhinho, grisalho e barbado,
De ar gentil, mas ao mesmo tempo imponente.
"Que faz um moço a essas horas acordado
Encarando a Lua tão tristemente?
És poeta e sofres por um amor
Ou planejas um crime por ser malfeitor?"
Interrompido assim de supetão,
Respondeu Alceste sem muita educação:
"E tu, o que és? Serias um mendigo?
Não tenho esmola para ti agora.
E antes que irrite-me, vá-te embora;
Não estou com paciência para contigo."
Ignorando a ofensa e bem amigável,
Replicou o ancião em tom agradável:
XXVIII
"À noite costumo ficar pensativo,
E algo me impede de deitar e dormir
Até que não passeio, contemplativo,
Encontrando algo sobre o que inquirir.
E tu, caro moço, és interessante!
Quem visse esse teu rosto tão contristante
Acharia que estás prestes a se matar –
É realmente nisto que estás a pensar?".
Alceste ficou muito envergonhado;
Fora descoberto pelo olho sagaz
Dum sujeitinho estranho, mas bem perspicaz.
Vendo assim seu plano perfeito arruinado,
Ao velho sua triste história contou
E, ao terminar, em lágrimas desabou.
XXIX
O velho escutara muito emocionado
A tudo aquilo que Alceste relatou,
Mas disse-lhe, ligeiramente irritado,
Quando seu conto finalmente acabou:
"Tolo! Pares já com tamanha sandice!
Ias fazer uma grande idiotice!
Deixarias o nosso mundo visível
Sem saber que existe um invisível
Capaz de ajudá-lo em seus desígnios?"
Alceste nada daquilo entendia
Mas achou que algo bom disso obteria.
Encarou o velho com olhos ígneos
E disse: "O que é esta baboseira?
Melhor explicar-me da melhor maneira!"
XXX
"Quando este nosso mundo foi criado,
Não existia o mal e Deus era presente;
O místico e o mundano andavam lado a lado
E se complementavam harmoniosamente,
Mas depois que nosso Ancestral pecou,
Nosso Deus aos dois mundos separou,
E só quem tivesse a alma purificada
Poderia ver a verdade selada
Que fez com que muitos fossem perseguidos
E ostracizados por uma sociedade
Mergulhada em obscurantismo e vaidade,
Dizendo que do Divino são entendidos
Quando nem ao menos um livro sabem ler
Ou seus nomes propriamente escrever.
XXXI
"Eis que ouviu-se um brado: 'Não mais!' –
E dele surgiu nossa organização,
Que desde tempos imemoriais
Assumiu a árdua, mas nobre missão
De, munidos com a chama da sapiência,
Trazermos luz, calor e inteligência
Àqueles que forem necessitados –
Damos alento aos desconsolados
E, graças à bondade que espalhamos
Seguindo os belos preceitos de Deus,
De todos os mais valiosos dons Seus
O da onisciência nós conquistamos:
Sabemos coisas que nem podeis conceber,
E vemos o que ninguém mais pode ver."
XXXII
"Sois tu então um desses alquimistas loucos
Que saem em fabulosa empreitada
E gastam todos vossos recursos poucos
Mergulhando de cabeça rumo ao nada?
Ou saíste de algum conto de fadas, mago?
Veio a mim em dia muito aziago;
Não quero saber de nenhum reino encantado –
Até para isto estou bem enojado."
O velho, com sua incomum polidez,
Disse: "Já encontrei quem estivesse pior que ti,
E facilmente a todos eu convenci;
Portanto, peço-lhe de uma só vez:
Quero que cordialmente aperte a minha mão
E se junte a mim em minha organização."
XXXIII
Alceste explodiu em sonora gargalhada.
"Confesso que és divertido, amigo,
Mas é melhor acabar com esta piada.
Não deves tu passar dum sagaz mendigo
Que se aproveita do desespero alheio
E por mentiroso e ilícito meio,
Engana os outros com contos fantasiosos
Para matá-los com os modos mais desonrosos.
Mas, se querias de fato me matar
(E à toa, pois não tenho um tostãozinho),
Como bem vês posso fazer isto sozinho.
Se não puderes de nenhum modo provar
Toda essa sua elaborada invenção,
Não lhe darei mais crédito ou satisfação."
XXXIV
E aí o ancião se empertigou;
"Não queria ter que fazer isto em vão,
Mas inicialmente até Tomé duvidou
Sem que antes de Cristo não tocasse a mão."
Então estendeu a mão direita ao céu,
E Alceste pôde ver que ele usava um anel
Gravado com misteriosas inscrições
E rubis carmesins em suas incrustações.
Então murmurou ele baixinho um feitiço
E Alceste, antes cético, não pôde acreditar:
O velho flutuava em pleno ar!
"Ora! Simão Mago, o que foi isto?"
"É o poder que só os escolhidos têm,
E que até agora viste com tanto desdém."
XXXV
"E agora que viste o meu valor,
Como podes dizer que ainda duvidas
De mim e de minha ordem, jovem senhor,
Que já salvou no passado inúmeras vidas?
Tem mesmo certeza que não queres saber
A fonte de tal mavioso poder
E abraçar a morte tão avidamente
Enquanto vomita sarcasmos friamente?
Pense muito bem, ó meu caro amigo:
Não troque uma chance de recomeçar
Por arrependimentos a te torturar.
Peço mais uma vez: venhas tu comigo!
Se negares, não irei mais incomodá-lo –
Mas com muito pesar é que irei deixá-lo."
XXXVI
Por alguns bons momentos Alceste pensou,
E viu que não tinha lá muito a perder.
Uma sombra de compaixão lhe perpassou
Pelo semblante e assim pôs-se a responder:
"Realmente admito que não é todo dia
Que um velho que voa mostra-me cortesia
E parece ter muita preocupação
Com o que deixarei de fazer ou não.
Se queres tanto que eu aprenda a flutuar
E conheça sei lá o quê de poder oculto,
Me junto à tua ordem, seita, culto –
Seja lá o que for – mas se eu não gostar,
Sinto muito, mas a esta ponte voltarei
E – não adianta suplicar – me matarei."
XXXVII
"Estou certo que conseguirás esquecer
Esta ideia funesta de se matar
Se veres o que de bom tem a oferecer
A vida, e o que Deus pode te ensinar.
Se é assim, siga-me, em boa hora!
Vamos recolher-nos, sem mais demora,
Pois a noite começa a ficar fria
E pela manhã teremos um longo dia."
E assim foram-se os dois caminhando
Seguindo rumo a lugar desconhecido.
Alceste, agora mudo e introvertido,
Consigo próprio ia assim pensando:
"Quis matar-me e agora sigo um velho que voa;
Até que isso daria uma anedota boa."
XXXVIII
Seguiram caminhando por horas a fio,
E nenhuma palavra a mais trocaram.
Alceste então deu conta: a cidade sumiu,
E a zona rural os dois já adentraram.
O velho exclamou: "Cá está minha morada!",
Apontando uma capela abandonada
Que ia ficando cada vez mais perto
Num prado vastíssimo – e também deserto.
Chegando onde outrora fora a sacristia,
O bruxo deu a Alceste um cobertor
E disse: "Agora, com a bênção do Senhor,
Nos veremos de novo ao raiar do dia.
Tente dormir, e quando amanhecer
Direi-te tudo que quiseres saber."
XXXIX
"Queres, pois, que eu vá dormir no chão!?",
Gritou Alceste, mas o velho já se fora.
Já tomara, porém, a sua decisão,
E teria que ir até o fim agora.
Ao destino que escolheu se resignou,
E não tendo outro jeito, no chão se deitou.
Cobriu-se, e o teto pôs-se a fitar –
Sua mente não parava de maquinar
No que consigo iria acontecer.
Depois de ter passado bom tempo pensando,
Finalmente viu que estava se cansando
E acabou por se deixar adormecer.
Se mais bizarrices a vida lhe traria,
Pois que esperasse até o próximo dia.