L’Étoile
(Fragmento da “Κατάβασης”)
[À Sra. Stephanie Armelin]
“The star which rules thy destiny
Was ruled, ere Earth began, by me;
It was a world as fresh and fair
As e’er revolved round sun in air;
Its course was free and regular,
Space bosom’d not a lovelier star.
The hour arrived – and it became
A wandering mass of shapeless flame,
A pathless comet and a curse,
The menace of the Universe;
Still rolling on with innate force,
Without a sphere, without a course,
A bright deformity on high,
The monster of the upper sky!”
(Byron, MANFRED)
E, fosse mesmo real ou uma ilusão,
Toda aquela cena se desfez prontamente.
Outra vez tomou-me o diabo pela mão,
E com um sorriso grotesco, repelente
A deformar-lhe mais o semblante odioso,
Pôs-se a encarar-me nos olhos, fixamente.
Eu nada respondi a seu gesto, medroso;
Mas, talvez por ver o que queria ver,
Rasgou o silêncio com um riso maldoso.
“Tarde é para pensar em se arrepender!”,
Disse, enfim, meu inconveniente, aziago guia.
“Há uma coisa mais que devemos fazer.
“Vejamos, longe, o astro que o alumia:
Quem dera poder fazê-lo no passado!
Vendo-o agora, não o reconheceria.
“Sob os auspícios dum Gênio bom beijado,
Seu brilho, segundo Sol, pressagiava
Comungar perfeitamente do sagrado
“Intelecto d’Aquele que o apascentava –
E em gratidão eterna a seu Criador
As glórias de Seus atos em hinos cantava.
“Ah! E quão delicioso era – que primor
Ouvir pelos confins do cosmo a ecoar
Os hinos tão belos de exímio cantor!
“Mesmo Israfel, de coração a palpitar
Tal qual as cordas de um luth melodioso,
Estancaria, mudo, para o escutar.
“O Fado é, porém, volúvel e caprichoso –
Guiado, talvez, por equívoco fatal
Distanciou-se de seu Criador bondoso
“E, seduzido pelas promessas do Mal,
Submeteu-se à Serpente e a abraçou
Em amplexo que se provaria mortal.
“O antigo brilho, desde então, se apagou:
As cordas plangentes da lira harmoniosa
Uma a uma rompeu – silente se quedou
“Afora do que fora a nênia lamentosa
Repetida semper eadem – mas em vão
A sotto voce – tênue, tímida, chorosa.
“O próprio existir lhe é uma maldição,
Singrando as plagas da Via Láctea, errante,
De todo o Universo a abominação!
“Tal qual um funesto cometa flamejante
A carregar consigo um imenso poder
E presságios dum cataclismo angustiante,
“Belo em sua desgraça pode parecer…
Belo – e tão fatal – como a fúria de um deus
Ou o último suspiro antes de fenecer.
“Mas que o veja com os próprios olhos teus;
Será demonstração muito mais proveitosa
Do que todos estes circunlóquios meus.”
E comprimi na minha aquela mão nojosa
Que, com incessante aversão, segurara
Até então; sua gargalhada asquerosa
Outra vez a infinda imensidão rasgara –
E, quando menos percebi, já alteráramos
O curso que eu até ali tomara.
Céleres, ao Signo do Leão chegáramos;
Fazendo jus ao nome, majestoso
Refulgia no espaço. O contempláramos
Quedos, até o diabo, imperioso,
Despertar-nos do encanto prontamente,
E assim segui em seu encalço, temeroso.
Devorei com meu olhar, avidamente,
Aquela inimaginável legião de estrelas
A ostentar seu fulgor orgulhosamente;
Para meu espanto, vi que todas elas
Por algum tipo de anjo eram regidas,
Sendo algumas mais, e outras menos, belas.
“Cada um destes astros encerram vidas,
Seja dum nobre, ou dum rude vilão,
Desde o princípio por Deus preconcebidas.
“Já rompendo o cárcere da gestação,
Todas pelo Pai previdente são marcadas
Por Sua bênção – ou por Sua maldição.
“Se o pudesse, veria as almas execradas
De quem, unicamente para sofrer,
Viera ao mundo – suas nucas pisoteadas
“Por quem, ditosamente, pôde nascer
Em meio ao chiqueiro de perlas da Fartura,
Assim podendo aos subordinados reger.
“Ah…! Existir é uma sina, e sina dura!
Mas Deus tem lá, não nego, sabedoria –
A intenção vale se é, ao final, boa e pura…”
Assim ia dizendo, em macabra ironia,
Aquele demônio que o Destino escolheu
Para servir-me de custódio e vigia,
Até que a distância algo viu – se interrompeu
E, um dedo ossudo ao horizonte apontando,
Proclamou: “Nosso destino diviso eu!
“Só mais um pouco; vamos nos aproximando
De TUA estrela – a triste estrela malfadada
Senhora de teu destino miserando!”
A paisagem tornava-se mais desolada,
Sem mais astro amigo para iluminá-la,
Emanando gélida aura triste e pesada;
Era quase como se fôssemos buscá-la
No centro de um Hades infernal, escuro,
Onde por force majeure mandaram exilá-la…!
Até que, finalmente, aquele astro perjuro
Em meio à tétrica vacuidade surgiu,
E que regia meu passado e meu futuro.
“Cá estamos!”, o importuno diabo sorriu.
“Façamos a experiência ser de grã valia;
Preste atenção!” E meu olhar dirigiu
Ao astro, que um brilho infausto emitia
Envolto em trevas, à mercê da solidão:
Em triunfo tenebroso no Éter se erguia,
Assemelhando-se, em minha imaginação,
Ao Anjo do Mal, decaído e orgulhoso –
Estátua verossímil da Rebelião.
Sentava-se acima do orbe luminoso
Um anjo – o Gênio que me fora consignado,
Num estado deplorável, lastimoso.
Pelas asas trazia o rosto ocultado,
Como se a vergonha o acabrunhasse
Ou, por alguma dor secreta torturado,
Mais nada ou ninguém a ele lhe importasse
Afora a mágoa que seu peito consumira,
Ansiando que por ela rápido expirasse.
Numa mão pendente trazia uma lira
Cujas cordas, constatara eu tristemente,
Uma a uma, quiçá em fúria, destruíra,
Resignando-se ao sofrimento, silente,
Como se, de propósito, se privasse
De qualquer consolação, teimosamente.
Instou o diabo para que me aproximasse
Um pouco mais; com sardônica crueldade
Ordenou que eu com a estrela falasse –
“Por isso até cá viemos, não é verdade!?
Diga logo aquilo que quer, sem demora!”,
Esbravejou, exalando malignidade.
Enfim acatei à sua ordem, muito embora
No ato não sentisse o mínimo prazer.
“De meu destino a intransigente senhora”,
Comecei, titubeante, a lhe dizer,
“És – longe de contestar teu poder real,
Cá venho para prostrar-me, e a obedecer.
“Rompi os grilhões de minha esfera mortal
Só por hoje; derradeiro ato de bondade
De alguém que talvez não mais viva, afinal.
“Venho tão somente por ser de sua vontade
Que me digas, se for digno de ouvi-lo,
Se Aquela que de mim teve piedade
“Sente, tal como outrora veio a senti-lo,
O amor que a nossos fados irmãos embalou
E se outra vez possamos nós dois consegui-lo.”
E eis que o anjo seu rosto a mim revelou;
Seu olhar penetrante, régio, imperioso
(Porém tão triste) em meu olhar se fixou,
E cortando o ar com um suspiro choroso
Respondeu: “Sob minha influência concebido,
Obedeço-te e renego-te alteroso,
“Ó filho do Barro, torturado, perdido
Pelo próprio profundo conhecimento
Que melhor fora nunca tê-lo obtido.
“Julguei ouvir, por efêmero momento,
Um tênue bafejo – um suspiro de amor
Subindo e evanescendo-se no éter, lento.
“Um suspiro eivado de afeto e de dor
D’Aquela mesma que, de nós compadecida,
Ao nosso destino entregou-se sem temor.
“Foi a última prece a nós oferecida;
Juntamente a ela, Aquela pereceu!
Sua voz jamais tornará a ser ouvida!”
E o amaldiçoado astro emudeceu…
“Haverei de vê-la no Além novamente?”,
Perguntei – nada mais, porém, respondeu.
Então permaneci, silenciosamente,
A contemplar a triste estrela malfadada,
Rememorando, melancolicamente,
O semblante de minha primeira amada,
Que por mim, mísero, em oração morrera,
Entregando meu nome à escuridão do Nada…!
E novamente, sem que eu o percebera,
Por ainda outra artimanha de meu guia,
Toda a cena uma vez mais se dissolvera
E de volta ao ponto de partida me via,
Sob a árvore banhada pelo luar,
Como se fora só um sonho aquele dia.
Ergui a cabeça, sorumbático, a fitar
O céu; aquele mesmo céu que eu explorara
E dera-me só mais razões para chorar –
Afinal, Aquela a quem tanto eu amara
O mesmo solo que meus pés já não calcava –
Em meio a uma última prece expirara…!
De tais reflexões, súbito, me tirava
Um sussurro incômodo, malicioso,
Que ao pé de meu ouvido escutava:
“Esse nosso passeio lhe foi proveitoso?”,
Clara, mas invisível, reconheci
Ser de meu guia – aquele demônio maldoso.
A seus sarcasmos, porém, nada respondi:
Uma tênue lágrima dos olhos sequei
E meu olhar ao céu outra vez dirigi.
“Por Ela, que morreu por mim, eu viverei!”,
Disse, em meu coração, à minha triste estrela.
E pelo menos àquela hora pensei
Que nunca a vida me parecera tão bela…