Defunto Autor: História de como morri

I

Quando a vida abandonar-me os olhos

Quando o coração cessar a tremedeira

E os médicos puserem-se a fazer autópsia

A faca na casca, calada transcorrer por inteiro.

Desespero! Na pele crepita estrangulada e indolor

"Será que morreu de amor?"

II

Sairá então borboletas esvoaçando pelo ar

Que medrava incansável no estômago a vagar?

Escorrerá tinta, mil cores, dos meus pulsos de palor

Dos sonhos que infindos jardins pintaram-se os ais?

''Não!'' Entranhas são entranhas. Infames entranhas

As dos poetas são todas iguais!

III

Há sangue, há tripas. Há também muito vermelho.

Choro vermelho que escorre, apenas uma vez

Despejam-me as vísceras, sob olhares curiosos

''Morreu de que? Jovem suicida, talvez.''

Vísceras repugnantes, como as de um louco qualquer

O que faz-me poeta sequer?

IV

Abriram-me o peito mas não encontraram o principal

''A morte foi lenta e gradual'' concluíram com desilusão

Tinha costelas perfeitas, que cobriam a vaga do coração.

''Foi no fim da vida, oblata, esta criatura então?''

Corpo sem sumo, um fosso ambulante

''Melhor seria fanar-lhe a cabeça errante!''

V

''O que há na cabeça irrisória? sonhos banidos?''

Ao partirem-me o crânio, de branco o empalideceu

Ao constatarem miolos esquálidos e remoídos.

O fígado abstêmio, de amor não padeceu

''Joguem aos cães este herege maldito!''.

VI

Meu defunto prostrado na mesa, infante, insepulto

Pulsos intactos, ossos saudáveis e cabelos sem cãs,

''Não encove-o! Não manche a terra pura e sã.' '

''Mete-o no fim do necrotério, algures inexistência secreta''

Declararam meu óbito então, como mal de poeta.

Defunto autor: Referência a Machado de Assis em sua obra 'Memórias Póstumas de Brás Cubas'

Exorcista
Enviado por Exorcista em 12/12/2013
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