EUTANÁSIA
“Enquanto isso, na enfermaria,
todos os doentes estão cantando
sucessos populares”
Renato Russo
EUTANÁSIA
Tenho duas mãos
Uma tem sono e a outra sente dor
Tenho dois pulmões
Um é negro e no outro há perfurações
Tenho duas orelhas
Uma tem brinco, a outra queima
Tenho muitas veias
Mas algumas estão entupidas
Tenho dois hemisférios cerebrais
Um ama, o outro odeia
Tenho duas pernas
Uma se empurra, a outra espera
Tenho milhares de fios de cabelo
Lisos na frente, atrás são rebeldes
Tenho trinta dentes
Quatro caninos, mas nem parecem (ser)
Tenho um estômago
Às vezes de elefante, às vezes de formiga,
De digestão dinamite
Razão assiste ao doutor:
Ácidas enzimas
Saborosa ptialina
Tenho dois olhos
Com graus diversos de miopia
Tenho dois pés gelados
Que não andam sem meias
Tenho tripas esbulhadas
Como todo mundo
Tenho coronárias vitimadas
Melindrosas aos 50 (ou antes)
Tenho um sexo litigante
Tenho narinas ofegantes
Tenho uma traquéia trancada
Um baço embalsamado
Um pâncreas hipoglicêmico
Dois rins,
Um de pedras, o outro alcoolizado
Tenho cirrose genética
E medo de câncer
Tenho medula óssea incompatível
Sangue denso e negativo
Tenho quelóides na derme
Varizes na pele
E alma asmática
Tenho um útero abortado
Em fetos e desafetos
Omoplatas corcundas
Fronetais derramadas
Melaninas desbotadas
Desabotoados meus pontos
Da última cirurgia.