"A orfã na sepultura "

 

 

 

Minha mãe, a noite é fria,

Desce a neblina sombria,

Geme o riacho no val

E a bananeira farfalha,

Como o som de uma mortalha

Que rasga o gênio do mal.

 

 

Não vês que noite cerrada?

Ouviste essa gargalhada

Na mata escura? ai de mim!

Mãe, ó mãe, tremo de medo.

Oh! quando enfim teu segredo,

Teu segredo terá fim?

 

 

Foi ontem que à Ave-Maria

O sino da freguesia,

Me fez tanto soluçar.

Foi ontem que te calaste...

Dormiste . . os olhos fechaste...

Nem me fizeste rezar! ...

 

 

Sentei-me junto ao teu leito,

'Stava tão frio o teu peito,

Que eu fui o fogo atiçar.

Parece que então me viste

Porque dormindo sorriste

Como uma santa no altar.

 

 

Depois o fogo apagou-se,

Tudo no quarto calou-se,

E eu também calei-me então.

Somente acesa uma vela

Triste, de cera amarela,

Tremia na escuridão.

 

 

Apenas nascera o dia,

À voz do maridedia

Saltei contente de pé.

Cantavam os passarinhos

Que fabricavam seus ninhos

No telhado de sapé.

 

 

Porém tu, por que dormias,

Por que já não me dizias

"Filha do meu coração?"

'Stavas aflita comigo?

Mãe, abracei-me contigo,

Pedi-te embalde perdão...

 

 

Chorei muito! ai triste vida!

Chorei muito, arrependida

Do que talvez fiz a ti.

Depois rezei ajoelhada

A reza da madrugada

Que tantas vezes te ouvi:

 

 

"Senhor Deus, que após a noite

"Mandas a luz do arrebol,

"Que vestes a esfarrapada

"Com o manto rico do sol,

 

 

"Tu que dás à flor o orvalho,

"Às aves o céu e o ar,

"Que dás as frutas ao galho,

"Ao desgraçado o chorar;

 

 

"Que desfias diamantes

"Em cada raio de luz,

"Que espalhas flores de estrelas

"Do céu nos campos azuis;

 

 

"Senhor Deus, tu que perdoas

"A toda alma que chorou,

"Como a clícia das lagoas,

"Que a água da chuva lavou;

 

 

"Faze da alma da inocente

"O ninho do teu amor,

"Verte o orvalho da virtude

"Na minha pequena flor.

 

 

"Que minha filha algum dia

"Eu veja livre e feliz! ...

"Ó Santa Virgem Maria,

"Sê mãe da pobre infeliz."

 

 

Inda lembras-te! dizias,

Sempre que a reza me ouvias

Em prantos de a sufocar:

"Ai! têm orvalhos as flores,

"Tu, filha dos meus amores,

"Tens o orvalho do chorar".

 

 

Mas hoje sempre sisuda

Me ouviste... ficaste muda,

Sorrindo não sei pra quem.

Quase então que eu tive medo...

Parecia que um segredo

Dizias baixinho a alguém.

 

 

Depois... depois... me arrastaram...

Depois... sim... te carregaram

P'ra vir te esconder aqui.

Eu sozinha lá na sala...

'Stava tão triste a senzala...

Mãe, para ver-te eu fugi...

 

 

E agora, ó Deus!... se te chamo

Não me respondes!... se clamo,

Respondem-me os ventos suis...

No leito onde a rosa medra

Tu tens por lençol a pedra,

Por travesseiro uma cruz.

 

 

É muito estreito esse leito?

Que importa? abre-me teu peito

— Ninho infinito de amor.

— Palmeira — quero-te a sombra.

— Terra — dá-me a tua alfombra.

— Santo fogo — o teu calor.

 

 

Mãe, minha voz já me assusta...

Alguém na floresta adusta

Repete os soluços meus.

Sacode a terra... desperta!...

Ou dá-me a mesma coberta'

Minha mãe... meu céu... meu Deus...

 

Antônio Frederico de Castro Alves foi um poeta brasileiro. Escreveu clássicos como Espumas Flutuantes e Hinos do Equador, que o alçaram à posição de maior entre seus contemporâneos, Nascimento: 14 de março de 1847 e Falecimento: 6 de julho de 1871.
Enviado por laylaemajnun em 21/03/2024
Reeditado em 21/03/2024
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