HOTENTOTE INVISÍVEL
No “sonho meu”, na dita principal,
de súbito, o corpo negro feminino surge,
nu em pelo, atravessa minha vida
na manhã recém chegada
descalça cruza a avenida.
Em silêncio, apressadamente caminhava,
povoada pelos gritos outros sufocados!
Com o olhar alheio a tudo que a cercava,
outro dia fora vista sentada em banco
de certa igreja, seguindo os rituais
preestabelecidos.
No dia anterior, outra vez fora vista, “desvairadamente”,
em marcha suspeitosa, desconfiada, plena de medos,
a virar-se para trás por vezes seguidas,
a buscar pelos outros corpos perseguidores,
e os dedos julgadores em riste.
Seu maior temor, in(consciente),
era das “pancadas” tantas
das cruéis feras humanas.
Hoje, entre a caminhada e o trote amedrontado
aquela Hotentote parecia invisível
só o homem que pilotava uma moto vermelha,
com uma outra mulher na garupa,
apitou quando passou por ela.
Obstinada caminhou até a parada de ônibus
onde a multidão de trabalhadores aguardava a condução
à vontade, sentou-se naquele social “banco dos réus”
dos olhares acusadores:
uns se levantaram
outros se entreolharam
Ela, permaneceu aparentemente plena,
afinal de contas, no íntimo já sabia:
muita gente a olhava
pouca gente a via
quase ninguém a percebia.
Naquela imponente nudez existia:
uma consciência proposital
um chamamento evocativo
um apito soprado
um sino de igreja tocado
um microfone ligado
um letreiro em neon
No qual se lia:
bom dia, boa tarde, boa noite, ...
Na vida das tantas Hotentotes Marias
Sou as Violências Todas
de cada dia!
E não houve galho, de 7 pétalas de aroeira, recém colhida,
na mão e na boca, que espantasse a sensação da cena vista.
Mas era 6h da manhã e meu coração doía
porque aquela Hotentote me atravessara o dia!