Diário de um Erê

Moleque,

Cria do gueto,

Mais um filho da periferia,

Nada de asfalto,

Nem mato,

Nem terra,

Vida em equilíbrio,

Na maré,

A cima do mangue,

Abaixo de Deus,

Com o suporte das fracas palafitas.

Fui batizado e protegido pelas águas do mar,

Sou filho de Ogum,

Minha mãe é Oxóssi,

Minha madrinha e protetora,

É e sempre será a senhora do mar

Salve Iemanjá.

Cresci por entre corpos que a maré trazia,

Eram comidas de peixe,

E a minha realidade,

É sem dinheiro no bolso,

Era barriga vazia.

Brincadeira era no campinho,

Rolava uma bola,

A fome saciada com a merenda,

Distribuída na escola.

Minha mãe trabalhava em casa de "família",

Por ironia do destino,

Eu cresci,

Sem conhecer a minha.

Desde pequeno no farol,

Pra uns trocados ganhar,

Mendigava,

Ou malabares,

Coisas que a vida,

Por necessidade,

Veio me ensinar.

Não tinha perspectiva,

Dessa vida mudar,

Cabeça vazia,

Vira moradia,

E o diabo,

Tentou se instalar.

Vida que o crime ostenta,

Quis me manter de refém,

Mas um projeto social,

Fez eu crescer,

E me levar além.

Me fez querer estudar,

Fez esperança voltar,

Me ensinou e me mostrou,

O que é ter um lar.

E em batalhas,

Em slans,

Eu conheci as prosas,

Versos e rimas,

E quanto mais participava,

Mais disso queria.

Eu sonhava em ser um escritor,

Pra poder dar entrevista,

Falar dos meus poemas em forma de rima,

Ser destaque em alguma capa de revista,

Dizer que tenho como inspiração,

O Criolo,

Racionais,

E também o Emicida.

As palavras se foram,

Folhas jogadas ao chão,

O Estado permitiu,

Que meu sonho,

Foi um sonho em vão.

Uma noite,

Em mais uma perseguição,

Duas fardas corriam,

Atrás de um pivete,

Que roubou um pão.

E na noite,

Sem a lua,

E na cegueira de raiva do fardado,

Todo mundo é igual,

Levei a culpa,

E fui morto,

De forma brutal.

Aos 16,

Perdi a vida como delinquente,

E a comunidade se ergue,

Pela morte de mais um inocente.

A mãe chorando,

E a justiça,

Ainda ri de mim,

Quero saber quando essa história,

Irá chegar ao fim.

Uma obra póstuma,

Ou uma carta,

Poema ou canção,

A chamem como quiser,

A escrevi para contar,

Como é viver,

No mundo de ilusão.

Charles Alexandre
Enviado por Charles Alexandre em 19/11/2022
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