A Fome Tem Endereço
Engana-se quem pensa que a fome nasce na boca, nos estômagos ou na mente,
alguns intuem, quase certeiros, que a mesma nasce nas calçadas de terra, nos casebres, descendo vielas, favelas,
até mesmo nas encostas de morros, mas ela nasce mesmo é nos dedos
Nos subúrbios dos vácuos estomacais, constringem-se as dores da miséria,
cravadas em quem leva a vida repetindo diariamente aos filhos em meio ao afago das mãos um lastimável e doloroso:
— dorme que passa! — ao urgir da fome,
sendo palavras suficientes apenas para encher os ouvidos mas jamais abrandar a dor do jejum imposto
Os campos abarrotados gritam, dizendo não serem culpados e que seus solos são ricos e generosos,
pois não lhes contaram o trajeto percorrido por cada um de seus alimentos
que chega majoritariamente apenas a quem já possui o estômago com tecidos irrompendo,
e as sobras de ossos, jogadas ao lixo, com um fiapo de pele, gordura grudada, sem um resquício de carne,
tornam-se comida, quase tão mais viva, que os corpos que as recolhem
Nas mãos portando canetas, a fome passa pelas unhas, circunda as páginas inertes, e mesmo assim rasura vidas
deixadas à própria sorte por quem tem na ponta dos dedos
as arestas para construir o mundo, mas empanzinado de si mesmo, arquiteta milimetricamente castelos ególatras e
distantes pontes intransponíveis
mesmo tendo o poder de mudar o mundo, destina a fome a algum endereço
Desvelando assim, o segredo de que a miséria é a maior fonte de enriquecimento
e a fome é negócio, hegemonia, eugenia, preguiça, descaso, sadismo,
descompasso social cientificamente pensado por quem prospera no caos
Enquanto eu sigo tecendo poesias, para almas alimentar,
nos mais altos escalões soberbos há inúmeros empanturrados sem nunca atingir a saciedade moral de entender que
em muitas casas, o prato vazio é o principal.