Bicho

Uma assombração vinha pelo beco

Esguia feito uma réstia

Bebericando um copo de vinho

Resto de alguma festa

Que não fora convidada

Ébria

Em direção à boca

Em busca da pedra

Da alegria pouca

Como um bicho, remava Nana

Sem rumo algum

Sua voz rouca, silhueta arqueada, como quem carregara muito peso na vida, simulava Nina Simone;

A preta velha - como uma entidade, que trás na sua idade não se sabe quantos lamentos -

Ruminava pensamentos sombrios, trazia trejeitos inquietantes, e um ódio angustiante no olhar, uma mágoa inconsciente, herdada dos seus antepassados, escravizados por brancos desalmados sob a bênção de um deus Cristão.

Soltava um escárnio, seguido de um escarro pavoroso, de quanta cachaça e maços de cigarros, enterrados goela abaixo para mitigar essa dor mitológica!

Mastigava insultos e engolia em seco olhares de asco…

A lógica do Capitalismo é essa: enquanto Nana cata lixo pra subsistir, Luna canta farta na sua luxuosa residência!

Tento falar de minha angústia, pois tenho colecionado muita na vida... mas acabo lembrando que tenho um teto pra dormir. Tento falar de minha tristeza, mas travo quando lembro que tenho um prato de comida na mesa...

E apesar disso, sou triste - e não sei por quê. Minto, eu sei o porquê, mas não importa.

Nana bebe, agora, o copo de cerveja com voracidade - me agradece e sai murmurando frustrações ladeira abaixo.

Uma flor nasceu na rua...

E quem liga?!

Quem liga para seu Bicho, Mané?

Quando o próprio bucho está cheio, quem liga pro alheio?

E eu tenho andado ilhado de mim ao ponto de tentar desistir de tentar resistir

Um vaso vazio jogado no quartinho das tralhas

Já fora um lindo ornamento com flores dentro

Um riso sufocado nos dentes podres de uma criança com fome

No rosto sem nome do pobre diabo um banzo ancestral

E a fé, que já moveu montanhas, mal move o próprio corpo da cama

Como Gregor Samsa

O mofo, as baratas, ferrugem e traças

E uma carta de amor guardada na gaveta empoeirada: era sobre pequenas mas grandes alegrias, pena que o tempo condenou esses"bons tempos" ao esquecimento...

E a pena que escreveu a carta, o vento levou.

...furou o asfalto, o tédio...

É feia, a velha Nana, mas já foi uma flor.

Dizem que reinava nos cabarés de outrora. Era a mais cobiçada; agora anda cabisbaixa atrás da pedra... no caminho, no cachimbo, a rápida combustão, o combustível que impele muitas a se prostituir; no caso de Nana, que é velha e feia, o jeito mesmo é pedir e apelar para alguém sentir pena…

- fio, tu tem dois real preu interar minha peda? Tô doida pra dar um tiro...

Levava alguém no corre, também, e de quando em vez ganhava um pedaço.

- tenho não, senhora. Mas boa sorte!

Queria lhe dar um pouco de paz, mas eu já estava com o nome sujo no SPC Serasa, além do mais, devendo a agiota...

Jey division
Enviado por Jey division em 14/06/2022
Reeditado em 29/08/2022
Código do texto: T7537641
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.