Espelho de Afrodite
Entre constelações, esferas rochosas, violentas estrelas mortiças e cintilantes cometas, nascer Vênus pode ser considerado uma afronta ao restante dos planetas
Pisando em trompas, ventres, ovários e vulvas e aquela mistura que poucos sabem ao certo o nome, lambuzo-me de sangue menstrual derramado nas ruas
Há polícia? O que há? Será que alguém me escuta? É claro que não, eu sou notícia corriqueira de uma realidade fantasticamente banal
O sangramento da violência não é repudiado, apenas é visto com asco aquele que mostra que sou um ser próprio, forjada em minha natureza
sem ser sexy, sendo apenas espécie
e que sinto por fora e por dentro me desmanchando em vermelho
A liberdade nas linhas sinuosas das páginas Legais só existe por lá
Lá, lá onde a lei é dos homens e julgada por eles, onde ela morre sem ser usada enquanto a sociedade ainda não evoluiu ao ponto de efetivá-las nas calçadas, nas pedras soltas que marcam, dentro de casa, que muitas vezes machuca mais que as ruas desconhecidas
Há alguma que diga que de fato sente-se livre? Tem certeza? Grite para o mundo! Veja as mãos lhe tapando a boca
Mas eu nasci sob este manto, eu sou pudica para quem decide que sou, mas sou promíscua por pouco, pois não nasci com respeito em mim, eu preciso me dar, preciso me encaixar no que consideram uma mulher correta antes
pois sou espelho de Vênus, Afrodite, com Ártemis escondida na mente
Na beleza estranhamente contraditória dos males do mundo que em meu colo foram jogados
Sou Eva, Pandora, Lilith
Atiramos fogo nos deuses
Só servimos quando somos santas e não como seres
A causadora não foi a maçã, a caixa, ou a força
Mas a liberdade, que é a verdadeira desgraça causadora de tudo desde os primórdios para quem não aceita que existimos por nós mesmas
Eu não vim de uma costela, você veio de um útero!
Sou espelho de Afrodite, ensinada desde a infância a ver o outro refletido nele
Que tem dentro do peito contos de fadas, o amor idealizado, as belezas, mas sempre encontrando pelo caminho tudo aquilo que prefere deixar esquecido no passado
O papel feminino delicado criado socialmente não condiz com a realidade
Ser mulher é violento, feio, pesado!
Não por nós mesmas, mas pelo que nos é ofertado
Que minhas características não sejam consideradas fraquezas, uma vez que, ser forte não é apenas criar dor, mas também aguentar, ultrapassar, superá-la
Quero ser considerada louca, histérica, desequilibrada
Pois a mudez me rasga e aquelas que a utilizam não personificam-se em ser, elas nunca vivem suas próprias vidas pois nessa realidade o tom de voz que chega aos tímpanos é apenas o grito
Quero o luxo de desagradar, de não servir, de não me preocupar com os reveses de apenas existir
Não quero ser tocada, chamada
Quero passar despercebida nessa jornada
Quero ser o centro do meu problema, quero falar de mim, não do outro
Agora sou eu, fique em silêncio e espere a sua vez!
Desejo não ser considerada complicada, complexa, incompreensível, pois julgam-me a partir deles mesmos e não a partir de minhas próprias características
Eu existo, eu existo!
Eu possuo vontades
Eu não quero ter filhos, não quero casar, quero liberdade!
Pois sem ela, tudo que eu fizer apenas me aprisionará mais dentro do gênero dessa casca
E a pergunta que nunca quis calar, desde Nietzsche até Freud, ninguém conseguiu nos entender, será que ao menos tentaram?
Pois respondo
O que quer a mulher? Poder ser ela e dela mesma!
Somos a mater dolorosa que sangra pela vida, sem vontades, que é usada ao bel prazer alheio, aberta quando necessária, fechada para si mesma, sem nunca dar à luz a sua própria existência no mundo
Em uma constelação escura de galáxia sem saída ou então, debaixo do mesmo teto, em plena luz do dia, eu não estou segura
Não interessa a idade
Como de costume, no caminho, olhos maliciosos, boca salivando espreitando coxas, seios e nádegas. Na mira, a passos rápidos pela rua, ela questionava-se: o que mais precisaria fazer para demonstrar ser apenas uma criança voltando pra casa?
E aquelas ruas nunca mais a viram passar por lá
Há pouco tempo, a poetisa que vos fala, inundada em preconceito, estaria assinando esse texto apenas com as iniciais do seu nome ou com um pseudônimo masculino, hoje em dia bato no peito e digo: — SOU LUA! — em caixa alta
Sou mulher escritora! Escrevo porque quero, escrevo porque acredito que a arte muda a realidade e embeleza o mundo, escrevo porque sinto e as letras são a minha voz,
escrevo para não ser só mais uma nas estatísticas de um país omisso a nós!
Mas enquanto redijo torto e coloquialmente sobre ser mulher
buscando as palavras necessárias para findar a poesia,
só encontro significados dolorosos em cada linha do dicionário feminino.