A Crise da Razão
Estava a pensar em toda tragédia do século XX,
Época que surgiu fundada na promessa libertadora do iluminismo.
Destes cem anos em que ao sonho a emancipação estava associada,
As dores, o capital, as desigualdades, os irracionalismos foram
Venenos destilados nos lábios da humanidade.
Presenciou-se os expoentes de um mundo novo,
Percorrido como terno paraíso, inspecionado pela maravilha das máquinas.
Mas onde se deduzia luz de sol claro e robusto,
Havia rubro sangue semeado pelo fogo da destruição.
As mais objetivas ideias, métricos métodos, licores de utopia,
Tornaram-se odiosos testamentos de uma acrítica geração.
Em locais que eram nivelados pelos húmus sombrios da Idade das Trevas,
Continuava-se açoitando cabeças em alguma desventura tecnocrática.
Baldes cheios de restos mortuários e dos gritos de piedade,
As armas químicas e nucleares multiplicando os filhos da sepultura...
Fazendo reviver os churrascos humanos patrocinados pelos papas.
Mil vezes Rousseau e Diderot torcem os narizes nos túmulos
Ao terem o desprazer de conhecerem os míseros atores do palco:
Hitler, Mussolini, Médici, Pinochet, Trump, Bolsonaro...
Pelo brilho do poder, de forma desértica,
Frios e truculentos, esses aparelhos da destruição encharcaram de pus
As fronteiras do mundo. A queda da Bastilha ainda não foi concretizada.
A era dos extremos retorceu cada neurônio da ciência,
Degenerou cada discurso das envolventes ideologias,
Entorpeceu tudo que existia, travando luta contra qualquer tipo de aurora.
Da batalha vivenciada não houve vitória dos braços operários,
Apenas toscas e privadas festas nas frias adegas dos homens de negócio.
A vida tornou-se efêmera e todos os seus valores triturados num louco moinho.