UMA TRAGÉDIA COTIDIANA
Levanto e labuto no sol e na chuva,
todo meu dia é de fé e oportunidade,
chego em casa pra jantar a noite curta
e quando mal vou respirar: labuta...
É meu leme, meu remo, minha cidade
navego no mar de gente, sem vaidade,
sou forte, valente, ousada, sou rua,
e constato infelizmente uma verdade:
Todo dia está subindo o preço da carne!
No supermercado os preços nas etiquetas
há tempos não descem a curva,
no carrinho, pão, leite, manteiga, açúcar,
já não entra queijo nem fruta,
peço um quilo de carne de segunda:
vinte e nove, trinta, quarenta reais,
ouço que é pra comer mais frango,
menos arroz, mais macarrão, nada de feijão,
vou no caixa, o que dava cem reais
agora é duzentos, duzentos e cinquenta,
por enquanto o bolso aguenta
e quando não der mais?
Eu vejo nas manchetes dos jornais
que nossas autoridades estão empenhadas
contra o comunismo que nos cerca,
que os índios estão queimando a floresta,
que nossas crianças estão a mercê
da ideologia de gênero e banheiro unissex,
que o mundo todo está errado
e só o presidente e sua cúpula está certa.
Eu cá tenho minhas dúvidas,
mas certamente uma coisa me deixa puta:
Todo dia em casa a carne tá curta!
Eu fiz pro Google uma simples pergunta
e li que o Brasil é o maior exportador
de carne bovina no mundo,
isso simplesmente é absurdo!
Como pode vender tanto, em todo canto
e aqui no açougue da feira
eu olhar bem na cara cínica do vendedor
e ele responder que tá em falta
e por isso não pode vender carne barata?
Já não tenho hora pra vender do meu dia,
a barriga ronca e as bocas estão abertas,
a cada um dos meus filhos uma descoberta:
arroz, farinha com ovo, farinha com ovo,
[ovo
sei lá o que vou fazer, não tenho tempo
anos atrás apontaram os culpados
e disseram: vote neste, naquele, no novo
prometeram que o dólar ia baixar,
que ia gerar emprego, aumentar salário,
até agora só corte e muito receio
talvez tudo estivesse errado
desde o começo.
Eu perguntei pro pastor
quando ele foi cobrar o dízimo atrasado:
Não tenho dinheiro
quando vai melhorar?
Ele pegou o envelope das minhas mãos
e passou a orar,
disse que se eu comprasse
um laço ungido do Senhor
a minha vida seria só prosperidade,
mas se eu não pagasse
Deus iria me amaldiçoar.
Li na bíblia que Jesus pegou no chicote,
Ah se eu o tivesse
naquela maldita hora!
Tudo não passa de desculpas,
o que eu quero agora
é que o preço da carne diminua,
pois as alternativas se esgotam,
como se esgotam minhas horas
minha vida, meu trabalho,
meu corpo gasto, minha sorte,
minha própria morte e depois?
Já não me interessa quem vai pro inferno,
quem fornica com quem, quem dá a bunda,
nem quem quer que seja comuna,
dá-me a mim só um meio de comer,
de levar minha família pra um passeio,
que eu lhes possa comprar uma maça
e tenha água limpa nos seus copos,
não sei da onde vem isso
e não tem ninguém, esquerdo
direito, centro, torto
que me explique dessas coisas.
Sou povo. Sou urna.