Um brinde
Esmagam-me!
Tiranizam a minha pobre angústia.
Na cidade conturbada se finge surdez,
E se põe o prato dos falsos moralistas à mesa.
As luxuosas vestes cobrem os olhos
E a doce egolatria, o bom juízo.
Todos se importam na Cidade do Futuro.
Dentro desse tormento, meu corpo se obstina
À grande praga dos séculos,
Às migalhas do café da manhã
E aos soluços consternados da madrugada.
Estou estraçalhada sobre o asfalto
Observando a todos passarem por mim.
Esmagam-me!
Tiranizam os meus pobres vestígios.
Todos curvam suas cabeças,
Pensam e estão proibidos de se expressar.
E o novo choro da humanidade,
Se esconde nos cartazes de recompensas fartas:
"Procura-se voz",
Então eu grito.
Mas quem há de me escutar?
E agora, sob as asas da penumbra,
Ofereço em taças
O perpétuo amargor da desgraça.
Estamos todos nos envenenando
E rindo.
Sim, um brinde:
À cegueira coletiva.
30.10.2019