PROSTITUIÇÃO


Não, tanto tempo assim não faz !
Vivi os resquícios do coronelismo
(fêmea era o retrato em b/p da escravidão),
quando rapazes de minha idade,
pra dar provas de masculinidade,
tinham que pôr os pés no cabaré,
embriagar-se e ter cigarro na mão.

Para mostrar meu pré-machismo
- apenas quinze anos eu tinha -
fui, com amigos, treinar erotismo
no cabaré de uma cidade vizinha.
(As meninas, nossas irmãs, não saíam, não!
Namorado na sala e só podia pegar na mão
).

Lá, encontrei uma jovem mulher,
até um pouco mais vivida que eu,
que me fitava da cabeça aos pés.
Quem sabe, revendo algum traço
fisionômico de certo parceiro seu.
Achei ser só um ligeiro embaraço.

De súbito, um inesperado abraço.
- "Ah, você já está um belo rapaz !
E, parece, nem me conhece mais!"


Pensei: 
"Prostitutas se metamorfoseiam;
em todo vestido exibem os seios;
mudam a cara, o andar, o cheiro.
Belas, vistosas  ou desgraciosas,
inventam histórias e são gulosas:
por dinheiro, quaisquer parceiros
"

Percebendo meu desprazer em
conhecê-la, não pôde se conter:    

- "Você é filho de dona Iolanda?"
- Sim!  (Seus olhos negros marejaram).
- "Pois ela é a minha madrinha,
a quem sempre tomei a bênção.
Mas, nunca lhe diga que me viu.
Eu sou a Maria, a filha de Maria,
em casa ou na antiga capelinha.

Meu pai - você deve conhecer -
condutor de trens lá na ferrovia.
Viagens que tardavam uns dias.
Em casa, casado, digno senhor,
moralista, pra vizinhança saber.
Fora de casa, mais um sedutor,
vistoso, todavia, de alma vazia".


Enxuga os olhos:
"Nada não, foi só um argueiro!"

E me leva ao seu "confessionário",
não pra fazer sexo - logo percebo.
Deitamo-nos lado a lado na cama,
único móvel do acanhado claustro.
Vê-la como uma desditosa amásia
e a mim, um insultuoso mancebo!?
Não !... Fui só ouvir sua confissão.

Aí, abre as pernas do seu lamento:
moiçola, afeita só pra o casamento
(sabia lavar, passar, cozinhar, arrumar e...),
caíu na graça de um jovem sedutor
e se apaixonou; aí (...), engravidou.

Alegria!  Seria uma mãe orgulhosa.
E falou pro seu amor, esperançosa.

Grosseira  e  inesperada decepção.
Corte repentino na vã  imaginação.
Pensou no despertar feliz dos dois,
de perspicazes sonhos  acordados,
agora  em  pesadelos  convertidos.
Chorou o "amor" que a desprezou:
o calhorda que renega a paternidade.

Viu-se desamparada e abandonada.
Seu fugaz "parceiro" sem paradeiro.
A mãe, escrava e submissa também
nada faria pra aliviar seu desespero.
O ventre a dilatar-se continuamente,
para amenizar as chicotadas do pai
sobre ela, inerme, e o neto, inocente.

E o pai chega de viagem. Coragem!
Enfrenta a fera: diz que ele será avô.
Mudança de humor, esbravejamento:

"Quem é o safado, diz, filha ingrata?"
- Grita, soqueando-a pelo despudor,
ao que ela rebate, em desvantagem,
porém equilibrada, serena e pacata:

"Sou humana, sou mãe, sua escrava,
deseducada, despreparada, incapaz,
incompetente para encarar a vida,  e
o senhor, meu pai, sedutor contumaz,
é o maior culpado deste  meu estado.
O senhor e o ser a quem chamou de
safado, são os dois para mim iguais".


E o pai, machão perverso, magoado,
dizendo-se doravante desmoralizado
perante os vizinhos e a comunidade,
amaldiçoa e expulsa a filha de casa:

- "Vai duma vez, senão te matarei !..."

Maria arruma seus trapos e farrapos.
Vai pra rua  envergonhada da marca
no sobrolho, magoada, mas saudosa
do lar onde nasceu, cresceu  e  onde
daria à luz, um dia, um filho de Maria.

Lembrou-se de dona Iolanda e...
buscou o apoio da querida madrinha.

"Fica aqui, Maria, mas só esta noite.
Amanhã vais viajar para outro lugar.
Mulher solteira e grávida, os afoitos
vão te assediar e o povo te repudiar.
E quem vai te querer pra trabalhar?
Tem mais:  como reagirá o teu pai?
Ave! Que a Virgem da Guia te guie,
Maria  -  abençoada filha de Maria"
...

Maria aprendeu  o  que  é  hipocrisia.
Suada de lágrimas, de grão em grão
continua a debulhar,  pacientemente,
ainda na cama, o seu sofrimento:

"Grávida, o cabaré não me aceitou!
A dona, só pra me amarrar, me deu
comida e dormida... - Sabe Deus!...
Chegou a hora e o meu filho nasceu.
Filho!?  Nem o nome eu sei !... Doei.
Não sei pra quem doei, mãe indigna
".

"Pra terminar,  só algo mais a contar.
Meu pai veio aqui  com  uns  amigos
que  comemoravam  uma  promoção.
Claro que nem pensava me encontrar!
Aí, a propósito, semi-nua até o umbigo,
mostrei meus seios e o grande glúteo".

"Quase sem fala, dada a emoção,
ou decepção, disfarçando o susto,
driblando os amigos a todo custo,
pálido e visivelmente irrequieto,
achegou-se e... perguntou pelo neto.

"Disse-lhe que, impedida de ser
a mãe honrada e dedicada que
tanto sonhava, doei o meu filho,
por ser coerente e por precisão.

Ele chora, pra lavar a minha alma

E, zangado por não ter um neto,
brada alto, como sempre indiscreto,
chamando a atenção da clientela
que farreava no animado salão":


"Jamais terás o meu perdão!..."
Fernando A Freire
Enviado por Fernando A Freire em 16/04/2020
Reeditado em 23/04/2020
Código do texto: T6918636
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