Criadagem
Criado mudo
Me arrasto, me gasto,
me afasto de tudo.
Criado cego
Me nego, me arranho,
me esfrego no banho.
Criado surdo
Não rimo o absurdo
do mando e desmando.
Teu criado de outrora,
agora alforriado,
dispensa qualquer ordem.
- Insolência.
Essa gente que nem decência tem.
Ter com que pagar
a eira e a beira
e a feira do mês.
Inês Pereira, Ladislau,
Araquém, do quê mesmo?
- Sei lá. Não sei meu bem.
Ainda têm
uma sobrevida.
Sobremaneira seguem
sopesando o caminho.
Para isso foram criados
Mansos, servis
e no primor da resignação.
Se faltar o amor,
que não lhes falte a oração.
Se faltar o pão,
alimenta-os da palavra.
Travem os estômagos
e dê-lhes letra por letra
da regra infundada.
Mais importante e lustrosa
é a ação caridosa,
que sela a dependência
e a premência do ego.
Prego aqui o devaneio,
vocifero o escanteio
dessa tal justiça social.
Destronada e postiça,
colada no peito
de uma ralé mestiça,
vive o exílio dos tempos.
Ela que seria esteio,
a divisão e o meio
exato do viver,
segue criada muda,
arrastada, gasta
e afastada de tudo.
Segue criada cega,
negada, arranhada,
na querença dum banho.
Segue criada surda,
na rima absurda
que anda e desanda.
Decerto, não sabes tu,
bibelô ancestral,
que o mal foi dissecado,
desnudado em praça pública.
Aceite sim que
tua criada de outrora,
agora alforriada,
é ave canora
no fim da madrugada.