DE Arnaldo Antunes

Arnaldo Antunes - Tribalistas

Ontem às 19:58

isto não é um poema

desabafo

que não pude não

fazer e não pude fazer

de outra forma

que não fosse

assim

fatiando as frases

no espaço

aqui

hoje

eu vi

aterro

rizado

um artista assassinado

Moa do Catendê,

mestre de capoeira,

autor do Badauê —

por conta de uma divergência política num bar

da Bahia

depois corri o dedo

sobre a tela e

vi e ouvi

arrepiado

Luiz Melodia

(também negro e compositor,

também com o cabelo rastafari,

como a vítima do post anterior)

cantando

“no coração do Brasil”

e repetindo muitas vezes

esse refrão

“no coração

do Brasil”

“no coração do Brasil”

que tento sentir

pulsar ainda

entre a luz de Luiz

e a treva

desse buraco vazio

que não pulsa mais no peito

de Moa do Catendê

e “não existe amor em SP”

ou “no coração do Brasil”

fraturado

nesses dias

brutos

de coturnos

chucros

a chutar a cara

de quem

ama

arte

cultura educacão

liberdade de expressão

diversidade

cidadania

solidariedade

democracia

mas não se dá

a mínima

o que importa é se subiu

a bolsa

caiu

o dólar

se todos vão prosseguir

seguindo

docilmente para o abismo

nessa insanidade coletiva

em que o Brasil nega

qualquer Brasil

possível

cega

qualquer futuro possível

e o ódio

o horror e o

ódio

e nada que se diga faz sentido

mais

para quê

expor na cara desses caras

a palavra explícita

(gravada em vídeo e repetida, repetida, repetida)

do seu “mito”

dizendo

“eu apoio a tortura”

“eu defendo a ditadura”

“eu vou fechar o congresso”

“não servem nem para procriar”

“não te estrupro porque você não merece”

“a gente vai varrer esses vagabundos daqui”

“o erro foi torturar e não matar”

“viadinho tem que apanhar”

etc etc etc etc etc

e tudo mais

que repete incansavelmente

há anos

ante câmeras e microfones

para quê mostrar de novo

e de novo

o mesmo nojo

se é justamente

por isso

que o idolatram?

e sempre haverá

os que vêm disfarçar

dizendo:

“estamos entre dois extremos”

“sim, mas veja a Venezuela”

“é para acabar com a corrupção”

“nós queremos segurança”

ou

“não é bem assim...”

enquanto constatamos cada vez mais

que sim,

é assim

mesmo, é assim

que é

mas

como li por aí:

“como explicar a lei Rouanet para quem

ainda não assimilou a lei Áurea?”

ou: como explicar a lei da gravidade

para quem ainda crê

que a terra é plana?

e querem defender sua ignorância com dentes

e garras

querem

matar atirar vingar

a quem?

em nome de quem?

(pátria, família, propriedade, segurança?)

se nessa seara não há direitos

nem respeito

ensino ou dignidade

só horror e

ódio, ódio

e horror

as palavras perdem a clareza

os valores perdem o valor

a vida perde o valor

Marielle

remorta remorrida rematada

por sua placa

rompida rasgada desonrada

pelas mãos truculentas de

brutamontes prepotentes

com suas camisetas estampadas

com a face do coiso

que redemonstra sua monstruosidade

quando vende

em seus próprios comícios

camisetas de outro

ultra-monstro

ustra

aquele que além de torturar

levava crianças para verem

suas mães torturadas

e esses mesmos

abomináveis

que, diante de uma claque vergonhosa,

se orgulham

de terem

rasgado as placas

com o o nome Marielle Franco

estão sim

agora

eleitos

satisfeitos

mas não saciados

de todo o sangue

de inocentes

que há de correr

só por serem

diferentes

excitando em outros

o desejo de exercer

seu obscuro

poder

de milícia polícia esquadrão da morte

e o anúncio da Rocinha metralhada

como solução

a barbaridade finalmente

institucionalizada

como diversão

o Brasil finalmente

sem coração

fora da ONU

e dos acordos internacionais pelo

meio-ambiente

sem controle

de sensatez ou mentalidade

sem limite humanitário

“não vai ter ong!”

“não vai ter ativismo!”

“não vai ter mimimi!”

bradam

cheios de si e de ódio

criminosos contra o crime

opressores pela família

amorais pela moral

apesar de todos

os alertas

da imprensa internacional

de esquerda, de centro, de direita

só não vê quem não quer

a tragédia anunciada

divulgada

não como boato

mas escancarada

-mente

enquanto

empoderados pelo discurso

de ódio

de horror e ódio

seus eleitores

já saem pelas ruas

dando tiros

e gritos

enxurradas de fakes

suásticas nazistas gravadas com canivete

na pele da menina

que usava “ele não” estampado na blusa

e a promessa de violência desmedida

se concretizando

antes mesmo de começar o segundo turno

e nem um centímetro de terra para os índios

e nem um pingo de direitos civis ou humanos

e a volta da censura e o ódio,

o ódio, o horror

e o ódio

pra encerrar de vez

o sonho de uma nação

que tem a chance

de dar ao mundo

sua contribuição

original

agora fadada a repetir o que de pior já houve

na história

sem história agora

sem Museu Nacional

nem cultura nem educação

abolir filosofia e arte

em seu lugar:

moral e cívica

escola militar

religião

geografia dos lucros e dividendos

massacre das minorias

horror e ódio

e ódio

e horror

crescente permanente enquanto dure

pois ninguém larga o osso assim tão fácil

depois de um golpe

que precisa parir outro golpe

ou autogolpe

alimentado por todas as fakes e facas

contra as costas de artistas

como Moa

mas na cabeça de quem apóia

tudo se justifica:

o fascismo

a tortura dos presos

o sumário julgamento sem juri

autorização dada à polícia

para matar

e o ódio aos pobres

as blitzes ostensivas

a guerra declarada

dos que aceitam assassinos para combater bandidos

se está tudo invertido mesmo

pobre elegendo milionário,

pelo avesso e ao contrário

então se autoriza a sórdida

barbárie

dos fortes contra os fracos

algo está muito doente

no Brasil

no descoração do Brasil

que mente, se omite, agride, regride

para avançar sem freios

em direção ao fascismo

seguindo a música hipnótica do

ódio,

horror e ódio

pregados em igrejas

em nome de Deus

e de Cristo

só desamor em nome de Cristo

violência e brutalidade em nome de Cristo

armas e tortura

e preconceito em nome de Cristo

de Deus e de Cristo

armar a população

para metralhar os adversários

os diferentes

os miseráveis

os favelados

os do outro lado

os que se manifestam

ou contestam

ou pensam de outra forma

ou se vestem

de outra cor ou tem

outra cor ou

qualquer pretexto

que se crie

para espalhar o ódio, o horror

e o ódio

do machismo ao estupro

da mentira ao linchamento

do homicídio ao genocídio

(“tinha que ter matado pelo menos trinta mil!”)

já sem democracia

palavra vazia

em boca

de quem compactua

(e não são poucos)

pensando ser

possível

alguma forma de

neutralidade

nesse momento

como Pilatos

lavando as mãos

a chamada mídia

tenta fazer média

ao dizer que os dois lados são igualmente

extremistas e perigosos

mas então

onde estavam nos últimos três mandatos

e meio

antes do pesadelo Temer?

estavam numa ditadura comunista

e não sabiam?

na verdade

todos sabem muito bem

que o extremismo

vem de um só

lado, que

quer se eleger para acabar

com eleições

e que o grande perigo é mesmo

esse jogo

de equivalências que,

na verdade

serve ao monstro

pois a omissão é missão impossível

neste agora

impossível

mascarar o sol

da ameaça

hostil e explícita

do nazismo

crescente

com a peneira furada

de um bom senso

mediano hipócrita indiferente

que sempre

vai dizer:

sim, mas a Venezuela...

como se não tivéssemos ouvido exatamente isso

em 64,

quando diziam:

— Sim, mas Cuba...

para justificar a ditadura militar

que tanto elogiam

hoje em dia

e que o atual

presidente

do nosso Supremo Tribunal Federal

decidiu

que agora vai chamar

de “movimento”

em vez de

“golpe militar”

para adoçar um pouco a boca

amarga

do sangue

impregnado

que não vai sumir assim

mudando a nomenclatura

desnomeando a já tão dita

“ditadura”

mas esse des-

-equilíbrio

ético

que diz

preferir uma autocracia

perfeita

a uma

defeituosa

democracia

esse

erro

que nenhum arrependimento será

capaz de reparar

quando for tarde

demais

ainda dá

para evitar

ainda

é tarde

de menos

para

conter

o ódio,

o horror e o ódio

ainda

dd

a

d

#IstoNãoÉUmPoema

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