A fome


A fome arrasta uma carroça e passa vagarosa pela avenida movimentada
Seja paulista, sulista, carioca ou candanga.
Calçada em trapos, metade pé, metade sujeira.
Seu corpo é repuxado, esquelético.
As hastes metálicas chegam a se confundir com as mãos que carregam
latas de coca-cola vazias, bebidas por quem não tem fome.
A fome tem poderes mágicos,
quando bate nos corpos os tornam invisíveis.
Insensíveis são os olhos de quem não tem fome
Ao lado das lojas abertas, pessoas vazias de barriga cheia.
Comentando o jornal local
Lamentando a violência banal
Enquanto comem...
A fome junta moedas pra comprar um pão,
mas pelo pouco que juntou recebe um: não!
E o frio traz fome.
Mas pra quem já tem fome
o frio traz medo.
Agora o pão já não é o bastante e
o corpo quer ir além da nutrição
Saciar a solidão
Disfarçar a saudade
Fantasiar que faz parte da sociedade
Deixar de ser invisível
Permitir que qualquer coisa entre na veia
Fumaceie os pulmões.
Depois de satisfeita
a fome esquece a si própria.
Agora não está desacompanhada
É facilmente notada
Mobiliza o aparato policial
Dá pauta para a matéria do jornal.
Agora é ela quem alimenta o medo.
Na mesma avenida lotada
A fome tão cheia de si
Quer dividir o que tem
Quer ser notada
É violenta
É violentada
E acaba por ser culpabilizada
pela própria fome que tem.
 
Carlos SJ
Escritor, Psicólogo, Músico
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